
quinta-feira, março 30, 2006
da janela, as árvores filtravam a humana imperfeição da cidade

ser solidário*
"As Árvores Cortadas"
Deceparam as árvores da rua!
Sem troncos hirtos na calçada fria,
a rua fica inexpressiva e nua;
fica uma rua sem fisionomia.
0 sol, com sua rústica bondade,
aquece até ferir, até matar.
E a rua, a rir sem personalidade,
não dá mais sombras aos que não têm lar.
As árvores, ao vento desgrenhadas,
não lastimam a peia das raízes:
Olvidam suas dores, concentradas
no sofrimento de outros infelizes.
Eu penso, quando à frente dos casais
vem sentar-se um mendigo meio-morto,
que uma fronde se inclina um pouco mais,
para lhe dar mais sombra e mais conforto.
Sem elas, fica a triste perspectiva
de uns muros esfolados, muito antigos,
que se unem na distância inexpressiva
como se unem dois trôpegos mendigos.
Quando vier com o seu farnel de lona,
arrimar-se à sua árvore querida,
o ceguinho de gaita e de sanfona
será capaz de maldizer a vida.
E aquela magra e tremula viúva
que anda a esmolar com filhos seminus,
quando o tempo mudar, chegando a chuva,
dirá que dela se esqueceu Jesus!...
Meu Deus, seja qual for o meu destino,
mesmo que a dor meu coração destrua,
não me faças traidor, nem assassino,
nem cortador de árvores da rua!
por Guiuseppe Artidoro Ghiaroni (in Antologia da Nova Poesia Brasileira J. G. de Araujo Jorge - 1a ed. 1948via Blog da Sabedoria)
a paisagem/ é um deus/ sem árvores*
A casa onde vivo foi meticulosamente escolhida entre duas frentes. As traseiras eram, na verdade, a sua grande frente: tinham uma pracinha em lugar das famosas pracetas de betão, e espaços ajardinados, orlados, como preciosas pérolas, por árvores de vários tipos, frondosas, que nos criavam a sombra.
Em frente de casa, pode-se ter um terreno baldio, os telhados da cidade, as janelas de vizinhos coladas às nossas, a vastidão do mar. Ou, simplesmente, uma fiada de copas que dá sentido à curva da estrada.
Esta manhã descobri que OITO daquelas árvores iriam ser cortadas, "para nivelar o passeio". Assim disse o homem, distraído, como se palitasse os dentes, a mostrar, com uma ponta de orgulho, que a sugestão fora dele e o Presidente da Junta "disse que sim".
Quanto custa matar uma árvore que levou 30 anos a crescer? Quanto se ganha em matá-la? (quantos negócios se farão com o tira e põe?...)
Não sei, mas acho que não é só culpa do homem que parecia palitar os dentes. Sei que a casa ficou triste de um dos lados, onde, despudoradamente, me puseram um barracão na orla que era o meu mar possível.
Ainda lá estão, as árvores cortadas, mas rente ao chão. Um depósito de madeira morta, com troncos bem vivos. Não foram sequer recolhidas: foram deixadas, assim, sem nenhum pudor.
Neste país que rima com Abril, à beira de um choque tecnológico que vai salvar o país da miséria, qualquer presidente de Junta pode mandar abater árvores...
Eram só choupos, mas eram os choupos da nossa casa.
Maria Armandina Maia
domingo, março 26, 2006
Eugénio de Andrade: uma casa que fosse um areal

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Música de Heitor Villa-Lobos e Francisco Mignone, executada ao piano por Joel Bello Soares
O LUGAR DA CASA
Uma casa que fosse um areal
deserto; que nem casa fosse;
só um lugar
onde o lume foi aceso, e à sua roda
se sentou a alegria; e aqueceu
as mãos; e partiu porque tinha
um destino; coisa simples
e pouca, mas destino:
crescer como árvore, resistir
ao vento, ao rigor da invernia,
e certa manhã sentir os passos
de abril
ou, quem sabe?, a floração
dos ramos, que pareciam
secos, e de novo estremecem
com o repentino canto da cotovia.
Eugénio de Andrade, o Sal da Língua
http://www.fundacaoeugenioandrade.pt/
sábado, março 25, 2006
hora de mulher: mercedes sousa canta alfonsina e o mar
Juan Manuel Serrat e Alfonsina Storni, lugares primeiros da minha construção

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Diante do mar
Oh, mar, enorme mar, coração feroz
de ritmo desigual, coração mau,
eu sou mais tenra que esse pobre pau
que, prisioneiro, apodrece nas tuas vagas.
Oh, mar, dá-me a tua cólera tremenda,
eu passei a vida a perdoar,
porque entendia, mar, eu me fui dando:
"Piedade, piedade para o que mais ofenda".
Vulgaridade, vulgaridade que me acossa.
Ah, compraram-me a cidade e o homem.
Faz-me ter a tua cólera sem nome:
já me cansa esta missão de rosa.
Vês o vulgar? Esse vulgar faz-me pena,
falta-me o ar e onde falta fico.
Quem me dera não compreender, mas não posso:
é a vulgaridade que me envenena.
Empobreci porque entender aflige,
empobreci porque entender sufoca,
abençoada seja a força da rocha!
Eu tenho o coração como a espuma.
Mar, eu sonhava ser como tu és,
além nas tardes em que a minha vida
sob as horas cálidas se abria...
Ah, eu sonhava ser como tu és.
Olha para mim, aqui, pequena, miserável,
com toda a dor que me vence, com o sonho todos;
mar, dá-me, dá-me o inefável empenho
de tornar-me soberba, inacessível.
Dá-me o teu sal, o teu iodo, a tua ferocidade,
Ar do mar!... Oh, tempestade! Oh, enfado!
Pobre de mim, sou um recife
E morro, mar, sucumbo na minha pobreza.
E a minha alma é como o mar, é isso,
ah, a cidade apodrece-a engana-a;
pequena vida que dor provoca,
quem me dera libertar-me do seu peso!
Que voe o meu empenho, que voe a minha esperança...
A minha vida deve ter sido horrível,
deve ter sido uma artéria incontível
e é apenas cicatriz que sempre dói.
Alfonsina Storni
NOTA: Peço a quem me puder ajudar que me explique o déficit de qualidade na postagem da música. Obrigada.
quarta-feira, março 22, 2006
Luiza Neto Jorge: toda a música para sempre

A casa do mundo
Aquilo que às vezes parece
um sinal no rosto
é a casa do mundo
é um armário poderoso
com tecidos sanguíneos guardados
e a sua tribo de portas sensíveis.
Cheira a teias eróticas. Arca delirante
arca sobre o cheiro a mar de amar.
Mar fresco. Muros romanos. Toda a música.
O corredor lembra uma corda suspensa entre
os Pirinéus, as janelas entre faces gregas.
Janelas que cheiram ao ar de fora
à núpcia do ar com a casa ardente.
Luzindo cheguei à porta.
Interrompo os objectos de família, atiro-lhes
a porta.
Acendo os interruptores, acendo a interrupção,
as novas paisagens têm cabeça, a luz
é uma pintura clara, mais claramente lembro:
uma porta, um armário, aquela casa.
Um espelho verde de face oval
é que parece uma lata de conservas dilatada
com um tubarão a revirar-se no estômago
no fígado, nos rins, nos tecidos sanguíneos.
É a casa do mundo: desaparece em seguida.
Luiza Neto Jorge, O seu a seu tempo
http://www.geocities.com/ail_br/luizanetojorgeouapresentacao.html
http://poesiaseprosas.no.sapo.pt/luiza_neto_jorge/poetas_luizanetojorge01.htm
http://maniasymanias.blogspot.com/2005/12/luiza-neto-jorge.html
segunda-feira, março 20, 2006
cantiga de amor em prosa quase acidental

Segurar os dias
Tenho-te ao meu alcance, da minha mão, dos meus dedos que sempre apertaram os teus, nas mãos dadas que nunca demos. A ponte está firme, apesar de oscilar, o tremor que sinto vem de dentro e tu não o vês nem nunca verás, porque é este o meu destino, a que já não fujo.
Maria Armandina Maia
os amigos são fadas que nos põem a mão no coração

Cantiga de amigo
Nem um poema nem um verso nem um canto
tudo raso de ausência tudo liso de espanto
e nem Camões Virgílio Shelley Dante
o meu amigo está longe
e a distância é bastante.
Nem um som nem um grito nem um ai
tudo calado todos sem mãe nem pai
Ah não Camões Virgílio Shelley Dante!
o meu amigo está longe
e a tristeza é bastante.
Nada a não ser este silêncio tenso
que faz do amor sozinho o amor imenso.
Calai Camões Virgílio Shelley Dante:
o meu amigo está longe
e a saudade é bastante!
Ary dos Santos
sábado, março 18, 2006
Sobre os lugares interiores de cada um

Esqueci-me do linho que queria ainda estrear, tirar da gaveta as toalhas e lençóis, e deitar-me neles, lavados, frescos, para depois os amarrotar de abraços e beijos.
Esperava o sol, que durou pouco. Mas espero sempre o sol. Vou esperá-lo até ao fim dos meus dias.
Mas o pó “é lixado”, como dizem os teus versos, que eu não consigo trazer ao de cima porque ainda não te conheço. Só sei que te gosto e te trato bem nos meus intervalos de grandes solidões, à espera que as grades se fechem que os serãos sejam mais bonitos, que os jardins me pertençam.
Trouxe flores comigo e o meu mundo, imperfeito, incandescente, mas vivo e cruamente honesto. Pus-me toda numa bandeja, como se mudasse de país. Vim para ti, a esquecer as dores e a dor, imensa, imensa.
Mas fecharam-nos as portas do jardim secreto e, quando o regas, lembras-me, infalivelmente, que devia ter sido eu a regá-lo. Eu, que amo os jardins na rua, eu que pensei que não havia nada de mal em passear nos jardins: aqui das redondezas, ou outros, os que nos levam a cruzar pessoas e a inventar-lhes a vida.
Cada um tem o seu quarto de trabalho interior. O meu está, em grande parte, nos corpos e nas vozes de quem cruza o meu caminho. Não deixes, por isso, de regar os jardins.
Armandina Maia
Correspondência(s), a tempo de nos salvar a memória

Para a Armandina Maia
Querida Amiga,
Toma os comprimidos. Ao acordar, ao almoço, ao jantar.
Mas não escondas na gaveta a lâmina das palavras.
Olha a injecção, o bater do coração.
Mas não rasgues as páginas do teu romance.
Quanto a inalações, a casca de três limões.
Mas não deixes definhar o sentido da “grítica”.
Grita, refila, gesticula.
E antes de dormir faz o lava-pés
Para não deixares de ser quem és.
Mas não te submetas. Muito menos a ti própria.
Porque é assim que gostamos de ti.
P.S. E da paisagem ( alentejana, quem diria !), faz o que quiseres.
Mas não te esqueças. Toma-se às colheres.
Carlos e Marina Brandão Lucas, Natal 2000
terça-feira, março 14, 2006
como se tudo fosse princípio
Conto vezes sem conta como chorava ao ter de deixar a roupa de anjo para ser uma menina igual às outras. Conto com pormenores de rigor que vou inventando, a segurar aquele pedaço de infância traída pela pressa da vida ou pela vida de pressa que encurtou a família não muito depois do anjo ter despido as vestes.
Conto-a e reconto-a, ouço-a contar – coisa rara nos meus ouvidos pobres de recordações – e dou corda a esta menina que dentro levava o vento e aragem, num baile que ninguém via, (só os anjos) mas que faziam os seus pés pisar as pedras como se aquele fosse o caminho da luz.
Como se tudo fosse princípio.
domingo, março 12, 2006
Daniel Filipe e Mito, com João Cabral a uma só voz

HOMENAGEM EM FORMA DE CABRA
João Cabral, tua cabra
tensa, rude, agreste mola,
só cabra porque se isola
onde não há porta que abra
para outro fim que não seja
ser imaterial, mas sendo
o osso do osso, aprendendo
da alada, lírica narceja
o voo em atitude exacta,
está presente na paisagem
como coisa, não miragem
inconcreta, embora grata.
Está por dentro de si, toda.
Cabra até aos cascos finos,
confidente de meninos,
mote em cantiga-de-roda.
Está, João Cabral, bastante
no lugar, no tempo, só.
Cabra mito, sol-e-dó,
vento e calor do levante.
Daniel Filipe, “A Ilha Imaginada”, Pátria, lugar de exílio
http://www.tanboru.org/mito/expPavana.htm
ESTE POST FOI CONCEBIDO A PARTIR DE http://www.aulil.blogspot.com/, CUJA LEITURA SE RECOMENDA, QUANTO MAIS NÃO SEJA PELA EXCELENTE TROCA DE ESTÉTICAS INSULARES.
CLICANDO AQUI, PODERÁ OUVIR POESIA DE DANIEL FILIPE POR ANTÓNIO CARDOSO PINTO
sábado, março 11, 2006
Viriato Teles: quando a vida troca as contas do que nos deve

ViriatoTeles, Contas à vida, Histórias do tempo que passa
http://www.aeiou.pt/registos/v/Viriato_Teles_Pagina_pessoal.html
http://attambur.com/Noticias/20021t/fausto.htm
http://www.novacultura.de/0305bocasdecena.html
http://amegafauna.blogspot.com/2005/08/ltima-entrevista-de-vasco-gonalves-por.html
http://www.revista.agulha.nom.br/ag34capa.htmhttp://lusomatria.com/noticias.php?noticia=1252
Portugal: (ainda e só) com as três sílabas do O'Neill

Portugal
Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
surdo e miúdinho,
moinho a braços com um vento
testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,
se fosses só o sal, o sol, o sul,
o ladino pardal,
o manso boi coloquial,
a rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,
a muda queixa amendoada
duns olhos pestanídeos,
se fosses só a cegarregua do estio, dos estilos,
o ferrugento cão asmático das praias,
o grilo engaiolado, a grila no lábio,
o calendário na parede, o emblema na lapela,
ó Portugal, se fosses só três sílabas
de plástico, que era mais barato!
Alexandre O’Neill
http://poesiaseprosas.no.sapo.pt/alexandre_oneill/poetas_alexandreoneill01.htm
http://www.astormentas.com/oneill.htm
http://www.vidaslusofonas.pt/alexandre_o_neill.htm
http://www.citi.pt/cultura/literatura/poesia/oneill/
http://www.triplov.com/letras/petrarca.htm
http://teiaportuguesa.com/fichaautoretrato.htm
http://nescritas.nletras.com/poetasapaixonados/deoneill/
http://vemosouvimoselemos.blogspot.com/2006/01/alexandre-oneill.html
http://www.criticaliteraria.com/9725752422http://www.revista.agulha.nom.br/alexan.html
quarta-feira, março 08, 2006
Carlos Brandão Lucas: viagem ao coração dos homens

O trabalho assinado por Carlos Brandão Lucas só não é “um voo cego a nada” por três razões. Porque o seu autor é um zeloso guardador de rebanhos, porque nunca esquece de que lado nasce o mar e, sobretudo, porque nunca trairá a memória dos homens, aquela que dá à "gente remota" um lugar na História.
Sem nunca perder de vista o rigor histórico e as fontes, Carlos Brandão Lucas seguiu no seu trabalho o ritual da memória como alicerces de uma ponte que permite aos homens conhecerem-se e aproximarem-se.
Carlos Brandão Lucas (d)escreve - e Marina Brandão Lucas fotografa (preciosamente) e produz - o testemunho daquilo que viu, tentando devolver-nos toda a integridade do seu deslumbramento, na sua unicidade original.
Não sei se chegará onde nos levará esta "grande viagem", porque é muito larga a água que corre entre estas margens. Sei que se a vocação multicultural deste trabalho é irreversível, pela trajectória que iniciou em torno da memória que nos une e que é, provavelmente, a nossa condição maior de sobrevivência .
http://www.apordoc.ubi.pt/docs%20portugueses/Filmes/a_grande_viagem.htm
segunda-feira, março 06, 2006
Amadeu Baptista: uma voz clara e brutal, como um choro que rompe a escuridão

QUADROS PARA UMA EXPOSIÇÃO
(...)
outro combate enfrento, como se
ao material da memória viesse acrescentar-se
uma presença física carregada
do que é em mim a génese de um destino
e o seu entendimento, uma estranheza
que só em algumas coisas reconheço,
seja um caderno branco ou um jogo de anilinas,
um cavalete ou um labirinto,
seja um livro por ler ou o escuro vão de escada
onde vou amontoando frascos, pincéis,
tubos de tintas, figuras mitológicas,
cubos, triângulos, panos coloridos.
eu sei que essa presença é como uma ilusão
e que toda a ilusão é uma traição
no exacto sentido em que o desvendamento
é sempre uma ocultação do que se mostra.
por isso a minha arte é este rosto
em que continuadamente convoco a invenção
e nó a nó a corda do desenho
é parte convulsiva do que digo
e vou acrescentando ao mais vulgar sentido,
por ser a parte pertinente desta história
em que a história se vai redefinindo
para que o clímax se atinja e a floração irrompa
sob a forma de um silêncio
que não é mais que um grito inexorável.
estou na linha de fogo, o mais das vezes.
(...)
Amadeu Baptista, O som do vermelho, Campo das Letras
http://www.revista.agulha.nom.br/abaptista.html
http://um-buraco-na-sombra.netsigma.pt/p_mundo/index.asp?op=4&p=2369
http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/amadeu1.htm
http://www.novacultura.de/0505fabrica.html
domingo, março 05, 2006
Possidónio Cachapa: escrever para nos escrevermos

Lêdo Ivo: toda a porta aberta é uma porta fechada

A cilada
As portas voltarão sempre a abrir-se como lábios
mas a vida será sempre cilada
e quem passar debaixo de uma escada
haverá de morrer antes da madrugada
Quem afinado canta nunca alcançará
o outro lado. Só desmantelada é que a melodia
atravessa o dia. Só a dissonância
avança na névoa e vence a distância.
Quem não tem voz própria não o ouvirá
o vento que sopra. Uma voz fanhosa
surge no jardim, para espanto das rosas.
E toda a porta aberta é uma porta fechada.
Nosso destino não é uma linha reta.
São recuos, desvios, saltos e paradas.
Lêdo Ivo, Curral de Peixe
http://www.revista.agulha.nom.br/ledo.html
http://www.releituras.com/ledoivo_resposta.asp
http://gavea.blogspot.com/2004/09/ldo-ivo.html
Ana Paula Tavares: (d)a voz das heranças

A mãe e a irmã
A mãe não trouxe a irmã pela mão
viajou toda a noite sobre os seus próprios passos
toda a noite, esta noite, muitas noites
A mãe vinha sozinha sem o cesto e o peixe fumado
a garrafa de óleo de palma e o vinho fresco das espigas
[vermelhas
A mãe viajou toda a noite esta noite muitas noites
[todas as noites
com os seus pés nus subiu a montanha pelo leste
e só trazia a lua em fase pequena por companhia
e as vozes altas dos mabecos.
A mãe viajou sem as pulseiras e os óleos de proteção
no pano mal amarrado
nas mãos abertas de dor
estava escrito:
meu filho, meu filho único
não toma banho no rio
meu filho único foi sem bois
para as pastagens do céu
que são vastas
mas onde não cresce o capim.
A mãe sentou-se
fez um fogo novo com os paus antigos
preparou uma nova boneca de casamento.
Nem era trabalho dela
mas a mãe não descurou o fogo
enrolou também um fumo comprido para o cachimbo.
As tias do lado do leão choraram duas vezes
e os homens do lado do boi
afiaram as lanças.
A mãe preparou as palavras devagarinho
mas o que saiu da sua boca
não tinha sentido.
A mãe olhou as entranhas com tristeza
espremeu os seios murchos
ficou calada
no meio do dia.
Ana Paula Tavares, Dizes-me coisas amargas como os frutos
http://betogomes.sites.uol.com.br/AnaPaulaRibeiroTavares.htm#POESIA2
http://www.uea-angola.org/bioquem.cfm?ID=116
http://www.revista.agulha.nom.br/anap.html
http://lusomatria.com/noticias.php?noticia=107
sábado, março 04, 2006
Maria João Cantinho: nas sílabas do mundo, até quase não ser

A dança primordial
De todas as formas,
este é o meu modo de ser,
improvável lugar entre as dunas e perfeição do céu
o meu modo de ser estilhaçado,
perdido num mapa que trago oculto sob a língua,
esta cartografia secreta,
onde concentro a esperança
no fogo da palavra, em sílabas de luz.
Olha-me com a ternura da primeira vez,
vê e evoca: o vento dança na areia, cantando,
vê e recorda esses milhões de grãos de luz
que navegam no longe do mar
nesse lugar
em que poderíamos, ainda,
morar no espanto, nascer de novo
e soletrar, letra a letra,
a caligrafia luminosa do vento.
Mas não esqueças, meu amor,
como leve é a dança primordial dos corpos,
não esqueças o derradeiro fulgor do sol,
a perfeição que se desenha
por entre esse cortejo de sombras
as sombras da música, as sombras das vozes.
De todas as formas,
Este é o meu modo de ser, lenta inspiração,
nesta feroz alegria de ter um corpo
que avança contra a escuridão,
em direcção a ti, o enlouquecido coração
tão asa quanto a noite de Verão,
onde tudo se dobra, mansamente,
para beijar a terra e celebrar,
onde tudo se aquieta
até quase não ser e permanecer
a dança das coisas, os gestos suspensos,
não esqueças a respiração da terra e a glória secreta
do mar, nas sílabas do mundo.
Maria João Cantinho, Sílabas de Água, 2005.
http://www.triplov.com/poesia/cantinho/
Conceição Lima: palmo a palmo, uma senda necessária

Residência
Visão de meu pai de volta à casa de
sua mãe, sam Nôvi, no Budo-Budo
Regressarás pela ladeira velha
sem aviso.
Será como ontem, ao entardecer:
remoto, repentino, o assobio.
E no caminho, um soluço de festa
derramado.
A luz será húmida
a chuva íntima
sobre a marca dos teus pés.
Dedo a dedo, folha a folha
tocarás os cheiros
os sortilégios do quintal -
o limoeiro anão da avó
o decrépito izaquenteiro
o ocá assombradíssimo
o kimi torto
e à entrada, no barro gravado,
o fantasma do bode branco.
O degrau há-de ranger ao primeiro passo.
Subirás devagar, concreto
sem pisar a tábua solta no soalho.
A porta está aberta, a tocha acesa.
Conceição Lima, O útero da casa, Caminho
http://www.revista.agulha.nom.br/lusofonia.html
http://www.novacultura.de/0502lima.html
http://culturastp.blogspot.com/2005/08/poesia-de-conceio-lima-em-espanhol.html
Pedro Tamen, a poesia aberta à voragem da criação

http://www.pitoresco.com.br/portugal/portugal/25_abel_manta/abel_manta.htm
Edital
Dextra, a sina implica sons de vento; não nos sabe
a boca a como era dantes -vibração,
embuste ou dano. Cresce a papoila e lá isola
a força nítida, flectida, não reflexa.
Não tem dos ditos sons uma audição visível
- mas o tacto. A nós, olfacto e tempo
se misturam no cadinho imperfeito
que os dedos finos formam (dedos
ou trémulos suspiros? maçãs do rosto
ou neve?) Mais duvida a penumbra
que a escuridão dos olhos, cesto, abrigo
do mais danado não; mas é nela
que a mão dorida poisa e faz a tarde.
De nós a oito dias não a vela
rodará; agora zune.
Neste momento exacto,
Como a gaivota limpa, aqui é isto:
a cólera dos numes. O peso adulto.
O pente sobre o Tejo. E as sereias.
Aviso aos que nos cortaram as barbas:
cada um dos nossos pêlos é contado.
Pedro Tamen, Tábua das Matérias
http://www.iplb.pt/pls/diplb/!get_page?pageid=402&tpcontent=FA&idaut=1426113&idobra=&format=NP405&lang=PT
http://www.nescritas.nletras.com/poetasapaixonados/detamen/
Teixeira de Sousa: viagem interrompida

Às vezes, uma banal e pacata travessia quotidiana interrompem o curso de uma vida, como se de um caudal tormentoso e árduo se tratasse.
http://www.asemana.cv/article.php3?id_article=13315
quarta-feira, março 01, 2006
João Vário- o que a distância interpõe e desconhece

E então subimos aquele grande rio
e as portas do Rodão, chamadas. Era em abril
dois dias depois da neve
e da cidade dos nevões, na serra.
E olhamos para os penhascos da beira-rio,
as oliveiras, o xisto, a cevada
as ervas de termo, e as colinas.
E, junto da via férrea, os homens do país
miravam-nos como se fossemos nós
e não eles os mortos desta terra,
homens do medo e do tempo da discórdia
que trazem para o cimo das estradas
a malícia que vai apodrecendo
seus pés neste mundo e em terras de outrém.
Que fazeis do mundo e da sua chama imponderável, os homens,
perdidos que estais, hoje como ontem,
entre a casa e o limiar?
E evocamos, mais uma vez, esse provérbio sessouto.
E, na verdade, porque regressaremos,
após tantos anos, a este tema?
Será que a morte nos ensinou
a olhar para o homem com pavoroso êxtase?
João Vário, Fragmentos
Para repôr com urgência a estrondosa ausência de um Camões para Cabo Verde, leia-se e releia-se, o que o país produz em termos literários (e não só). Ver a este propósito, o comentário de F. José Viegas em http://origemdasespecies.blogspot.com/. E ainda http://www.aulil.blogspot.com/: ambos obrigatórios, para quem quer estar a par.