domingo, outubro 23, 2005

biografia tardia por incompatibilidades de template


Nasceu em 1950, por alturas da Primavera, em Vila Nova de Gaia, uma cidadezita que lhe parecia ser do tamanho do mundo. Ampliou a geografia de origem com a partida para Coimbra, em que se defrontou com a história do país a preto e branco que até aí lhe parecera a cores.
Exilou-se por vontade própria, mais do que por imperativos políticos. Viveu entre Itália e Portugal oito longos anos, de fulgor e muita mágoa pela separação. Descobriu cedo que a pátria é um conceito permeável.
Criou dois filhos, entre cantigas e bastantes histórias com futuro, que continuam à espera de um epílogo feliz. Passou por Camões, num Instituto onde dirigiu a Acção Cultural Externa, título e honrarias que lhe passaram ao lado, na fúria de inventar um lugar para uma cultura fora dos lobis e do umbigo lisbonense europeizante.
Tem amigos e inimigos, como convém a qualquer pessoa parecida com um ser humano. Entre as obsessões de estimação, contam-se a luta infindável contra o esquecimento, esse branqueamento de capital humano que despovoa e erradica a memória, o mais unitário de todos os elos.
Por isso, espera continuar a manter esta “luz de presença”. Par que se saiba quanto mundo existe para lá da “realidade” que todo os dias nos dão a comer numa bandeja.

sábado, outubro 22, 2005

como uma linha recta que desce do horizonte à hora certa


José Manuel Rodrigues, Água de Prata, 2001

Vejo-te sempre desse lado da ponte e eu aqui, na outra ponta, a acenar-te antes de a atravessar até ti. Caminho com passo seguro porque sei que me vês, e quero que me vejas assim, firme e invencível, a caminhar até ti.
Peço-te que não dês um passo sequer, que não abrevies esta demora que é só nossa. Chegarei antes que seja tarde demais. Só nos sonhos é nos perdíamos um ao outro.
Aqui, no extremo da ponta, exerço-me no extremo de mim, da angústia que mascaro, sorrindo para ti. Olho-te como uma actriz no écran, e percebo aquilo que os outros vêem em mim, uma fonte infindável de vida. Aqui, a poucos passos de ti, com o abismo por baixo dos nossos pés, tremo de pavor como uma qualquer pequena mulher sem particular educação no mascarar dos sentimentos.
Tremo assim, mas nada disto tu vês. Não quero que vejas. Quero que me sintas exacta, como uma linha recta que desce no horizonte à hora certa.

Maria Armandina Maia, Outubro 2005

domingo, outubro 09, 2005

esperando o mesmo deus de asas de oiro, que os pensantes e sábios dizem finalmente ter chegado

"De vez em quando, ouvem-se ecos abafados dos clamores dos súbditos de aura branca, a pedir justiça perante tanta iniquidade, tanto fausto na corte, tanto ouro na lapela e nas roupagens, com o povo a morrer de fome, e a aplaudir o rei, qualquer que seja, esperando mesmo o deus de asas de oiro que os pensantes e sábios dizem ter finalmente chegado, e as trompetas anunciam a cada minuto, para além das novas que todos proclama, cada vez mais próximos do rei, o rei sem rosto e sem nome, que os pensantes e sábios, também eles sem rosto e sem nome, elegem como rei até rolar a sua cabeça, para depois renovarem as vénias infinitas perante o sucessor, o Sempre Anjo, o Sempre Predestinado, o D. Sebastião que juram e extrajuram ter finalmente visto".
Maria Armandina Maia, O testamento dos vivos, inédito