sábado, fevereiro 10, 2007

até que a morte os separe

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Tenho assistido, com alguma rejeição, à verborreia de argumentos sobre o sim e o não, tudo a puxar para a política, tornando aquilo que é inevitável, em termos de crescimento colectivo, uma falsa possibilidade de escolha.
Adiar a despenalização do aborto é mais um adiamento do futuro. Quer dizer, há leis que não devem estar nas nossas mãos: devem fazer parte de um programa governamental que se preze e que defenda os direitos das pessoas como o petróleo do Alentejo.

Não vou repetir que o aborto é difícil e traumatizante, porque acho que, para muitas mulheres, foi, durante décadas, a única maneira de estancar a hemorragia de filhos que nasciam de relações de prazer e não só das prescritas pela lei religiosa, para procriar.
Desde então, alguns tímidos progressos foram feitos. As mulheres tomam a pílula, evitam os filhos e não têm portanto que se tornar assassinas em série de fetos que não caberiam na família.

Mas o que queria mesmo dizer sobre isto é que me repugna profundamente o abuso da terminologia, que chega a transformar um embrião em filho, no espaço de um referendo.
Contudo, a diferença não podia ser maior. Um embrião é fruto de uma relação sexual. PONTO. Um feto, como se estuda(va) nos liceus, é um ser que poderá vir a tornar-se uma criança, se a gravidez correr bem.

Uma criança, um recém-nascido, é um ser à tona da água, completamente à mercê dos outros, ou melhor, do amor dos outros. Mas um filho, nada de confusões, é um embrião que passou a feto, que passou a recém-nascido, e que é amado e desejado pelos que o criaram.

Uma criança mal amada, indesejada, um peso na família, abandonada a um cantinho de onde assiste a tudo o que nem um adulto deve ver, uma criança depositada em lares e orfanatos (nem sempre parecidos com uma família, como bem sabemos), ou até mesmo depositadas em colos de amas e criadas de luxo, em famílias que mal tocam nos filhos, entre o excesso de trabalho(?) e de lazer, uma criança assim nascida e criada é um filho?

Como aquele caso que conheci, do bébé crescido entre lençóis de cetim, onde a mãe o depositava, para lhe dar o biberão, que colocava em cima do travesseiro para não ter de o segurar com as suas próprias mãos.

Os “sims” nascidos do medo e do terror do confronto público, do que os outros pensam, da ignorância, dão quase sempre, “frutos” como os que atrás descrevi. Aliás, nem era preciso. Todos sabemos quantas Joanas há espalhadas pelo país.

E é inútil apontar o dedo às mães que o não são nem nunca serão. Por isso e por muitas das razões já ditas e reditas, espero que o sim seja um ponto de partida para, um dia, se responsabilizarem os pais não pela morte de um feto mas pela assistência, amor e dedicação que devem a um filho.
Qualquer que seja a sua condição e a sua vida.
Até que a morte os separe.



armandina maia

domingo, fevereiro 04, 2007

o sim e o não do referendo- que culpa nos caberá?

Foi assim que o David pôs uma pedra em cima do assunto. O David é aquele miúdo com olhar de gente crescida, com ar de órfão de guerra, a caminhar sempre lento como se nunca tivesse pressa. Nem entusiasmo. Mas insisto no olhar apagado como uma luz escura. Não há nele vestígios de revolta. Talvez algum -ou muito - medo, que já são águas passadas.
O David e os seus olhos caminham como se a estrada tivesse chegado ao fim. (Que culpa nos caberá de tudo o que ele calou?).
De vez em quando dá mostras de estar vivo, ao desenhar os ténis em fim com que enche as folhas de linhas do caderno ou os símbolos do Wrestling, que o fazem sorrir como se o riso não fosse dele.
O sorriso do David é uma verdadeira bofetada nos dias mundiais da criança. Porque o David pertence àquele grupo que parece já ter visto tudo. E não gosta do que vê nem do que sabe. No entanto, como qualquer homem de honra, jamais trairá o segredo da família. Aquela é a sua família e a sua gente.

Com mais ou menos dor, como dizia ele na composição em que contava a história dos "arrufos" familiares, lá no fundo damo-nos todos bem....
armandina maia

quinta-feira, fevereiro 01, 2007

aprender a olhar as estrelas



para as muitas joanas que este país (não) conhece

Conheci o David como um perdedor nato, camuflado num andar desleixado, a encolher as pernas (e as repetências), altas demais para a sua idade. O seu currículum falava por si. Várias retenções (leia-se repetências) na escola primária, e a coragem de não ir às aulas, ficando-se não se sabe por onde.
Chegou à escola indolente e (aparentemente) alheio, com um ar infeliz de quem está não está ali a fazer nada. Falava pouco de casa. Ninguém lhe perguntou por onde andara nos meses todos em que tinha faltado à escola. Parecia descrente, quase resignado, a cumprir a sina (ou a pena) de ter de estar ali. Sem nada daquilo que trazem os alunos, cadernos, lápis, canetas, livros, mochilas, puxava a custo de um bloco de folhas amarfanhado, uma espécie de dossié para todo o serviço.
Logo num dos primeiros dias, lancei-lhe o desafio, à espera de acertar nalgum nervo daquelo corpo franzino, precoce e apagado. Perguntei-lhe se trazia o bloco de notas na barriga para se proteger das balas dos bandidos.
Cintilaram os seus olhos. Podia ter sido ali, como em dia nenhum. Mas acho que acertei na bala que disparei. Tudo um bocado às cegas, com o instinto e a fidelidade canina com que persigo a esperança de mudar as voltas à vida.
No dia seguinte, um outro David apareceu à porta da sala: Já no meio da aula, cheguei-me perto para ver as mudanças com os meus olhos: o David escrevia, imperturbável, a desafiar as leis da gravidade que até ali sempre lhe tinham conduzido a vontade.
Vi a sua caligrafia espraiar-se, perfeitamente alinhada à esquerda, sem riscos nem hesitações. Uma letra de quem pensou muito, em muitas coisas que a nossa imaginação conhece, fértil em histórias de crianças sem história.
Para minha grande sorte, o tiro tinha acertado no alvo: o David percebeu que tinha uma palavra a dizer e que não havia nenhuma condenação perpétua nos seus 14 anos. Se o passado não lhe pertencia já, o futuro ainda poderia ser seu.
Foi eleito delegado de turma, cumprindo o mandato entre críticas e aplausos (era um bocado bruto com o pessoal das hostes inimigas, por causa do Wrestling, a sua paixão).
Saiu da Escola quase tão ingénuo como tinha chegado, ainda inábil e ainda inseguro, a disfarçar, como podia, o medo de crescer.
Mas antes, no último teste - apesar da sua avaliação, decidida entre ambos, penalizar as faltas de trabalhos de casa, baixando o seu nível de quatro para três- brindou-me com um molhe de palavras:


S'tôra, desejo que seja muito feliz


Escreveu com a sua letra firme e regular, no canto do teste, à laia de despedida.
Outro dia, veio visitar-me. Só dar um beijinho, ao portão, como mandam as regras. O seu olhar tinha crescido.
Dizia “professora” em vez de “você”, e tinha abandonado o “diga lá” com que entrecortava os diálogos. Gostava da nova escola e dos colegas. Já tinha caderno e mochila, que arrastava consigo todos os dias.
Um aluno como os outros, agora estirando as suas longuíssimas pernas entre rasteiras e jogos de bola. Um aluno como tantos outros, que não têm o futuro escrito nas estrelas, mas, se calhar, aprenderam a olhá-las.



Maria Armandina Maia