sábado, dezembro 30, 2006

entre o voo e raíz

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imagem de antónio ferra
Entre o voo e a raíz

Amigos,

Sinto que os anos nos fogem por entre os dedos da mão, frágil para conter o coração menos ágil, que ainda colhe, não sei de qual raíz, a pureza e os mistérios dos sentimentos nobres. Aqueles em que mergulhamos como numa profissão de fé, que nos diz que somos de um todo e só todos (nos) fazemos sentido.
Busquemo-nos pois, mais agasalhados por causa do frio da estação, que a idade chega e nunca recua. Só a tal raíz nos torna invencíveis e audaciosos, como se o frio aqui não estivesse, a criança de dois anos brincasse como fazem as crianças de dois anos, as mesas resplandecessem da luz do brilho das famílias em volta, sem distância, sem almas perdidas, sem lugares vazios.
Muitas vezes me sentei nesse lugar, o lugar vazio e caminhei pelos corredores às escuras de olhos fechados, a desafiar o medo. Isso no tempo em que o meu coração voava.

Neste Ano de 2007, quero encontrar-me entre este voo e a raíz de que te falo, quero ver-te outra vez junto ao mar, quero sentir o teu olhar quente de alegria cruzar-se como meu, como velhos amigos que se entendem com um só suspiro.
Neste Ano de 2007, quero ser mais forte, capaz de enfrentar a fraqueza dos outros com o poder infinito das alianças, do acreditar infinito que conheço de cor e recomeçar as cantigas de embalar que quase esqueci, afinando a voz que de vez em quando lembro que existe, fina e bela.
Neste Ano de 2007, quero enterrar o simulacro de gente com que me cruzei, ímpia, pobre e crua na sua ignorância maior que é a avidez, para regressar a mim e ao lugar a que pertenço, a que pertencemos todos os que nunca estamos sós, porque, a um só gesto, somos todos um, no pensamento, no voo e na raíz.

Maria Armandina Maia
30 de Dezembro de 2007

domingo, dezembro 24, 2006

a esperança continua a ser o berço que nunca abandonámos


natais pequeninos

Recolhem-se os pedaços de fita que ainda podemos aproveitar, restos de embrulhos, sobras da comida que ainda imitamos, por persistir na memória das coisas.
se calhar, mais do que tudo, existimos nela, a tal memória que nos cola os cacos que um dia nos aparecem à frente como uma barreira intransponível. uma daquelas barreiras pequeninas e cobardezinhas, que cortam o olhar de quem quer passar além.
vivemos todos atrás de uma barreira assim, pequenina e cobarde.
só a memória leva até ao outro lado.
eu sou só a mais longa memória do que vivi, do que vi e do que pressenti.
e sou ainda a viagem constante entre rostos que me deram a vida que todos os dias me sobra, do muito que já me coube.
por isso eu quero cada vez menos natais pequeninos de shoping center, habituada como estou às mordomias de natais diários, em trocas de amigos que vão onde eu for, onde quer que seja o norte.

armandina maia
natal de 2004


natais dos pequeninos

Sabendo, como sabemos, da sua passagem efémera e de como tantos se afastam cada dia que passa de um qualquer espírito de ajuda, fraterno e solidário,
mas sabendo, como sabemos, que a nossa vontade tem de ser maior, e vencer a vidinha que com tanta nitidez se desenha no horizonte poluído de gente infértil,
sabendo, como sabemos, que continuamos juntos, num abraço que nunca se desfez, a esperança continua a ser o berço que nunca abandonámos, seja ou não dia de natal.


armandina maia
natal de 2006

domingo, dezembro 03, 2006

gisberta, um adeus português

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Freedom
, Barbara Lessing, Jardins de Bagdad, 2004


Muito do lixo televisivo e dos pasquins vários que dão pelo nome de jornais, alimenta-se, invariavelmente, de uma "programação" para os eruditos e os "furos" jornalísticos, a farejar sangue, a chegar-se cada vez mais, às telenovelazinhas domésticas. Num e noutro caso, em pouco se engrandece o parco território cultural que por cá se respira.
Foi, portanto, com grande surpresa que vi erguer-se um muro de silêncio em torno do caso Gisberta. Claro que se ouviram, aqui e ali, uns tímidos protestos e uns laivos de jornalismo crítico e vivo. Mas só há 2 ou 3 dias encontrei uma rigorosa história, que ia muito para além dos factos públicos, tentando perceber o nó da questão.

Que há um nó, há certamente: um travesti assassinado, que, mais tarde se descobre ter morrido por afogamento e, mais ainda, cujos jovens assassinos vão sendo transformados, do dia para a noite, pelo próprio Ministério Público, de hediondos criminosos em crianças em risco, sem consciência que estavam a maltratar alguém até à morte, é caso, no mínimo, para ficarmos -ainda - mais inquietos sobre o estado da justiça em Portugal. E que toda atrapalhada à volta deste caso tenha pacificamente sido manipulada a bel-prazer dos poderes instalados, não é caso para ficarmos mais descansados.

Longe de mim a ideia de os jovens à beira do abismo fossem lançados à fogueira, mas, conhecendo como conheço, algumas dezenas de jovens em risco, não me parece ter sido exemplar despenalizar o crime. Teria sido, sim, importante, para a sociedade, mostrar como se cruzam as faixas do bem e do mal, e como, perigosamente, alguns jovens, por desporto, por ócio, por ódio aos pais que os deixaram entregues à sua sorte, por imitação dos chefes de fila, por medo de ficar para trás e não serem ninguém na vida, nem como não heróis, por raiva mal contida contra os agressores que muitas vezes os rodeiam e lhes fazem de pais e de carrascos, com alguns maus tratos pelo meio e talvez umas festinhas na nuca a lembrar quem manda em quem, talvez por isto ou por qualquer outra razão que não conheço, alguns jovens vivem numa ravina onde só se desce, e despenham-se sem sequer deixarem vestígio de ali terem estado.

Jovens como este povoam hoje grande parte do mundo, encostados às paredes à espera do biscate, dos desempregos sucessivos, arrastando-se até ao fim do mês para receber o subsídio, a esmola que lhes pagam para fingirem que estão vivos, qundo, afinal, como eles muito bem sabem nas noites insones, nada nem ninguém os espera. Mal sabem falar, muito menos escrever, apesar das suas cabeças adivinharem a escuridão que se aproxima, quando um dia ficarem na esquina à espera do cliente e começarem a chutar no corpo algo mais forte do que os penalties que já não lhe abrandam aquela dor permanente de não serem de ninguém.


A Gisberta, não sabemos como nem porquê, também por aqui passou. Não sei em que esquinas perdeu aquele ar de quase senhora de que parecia orgulhar-se, o rosto sereno e altivo, rodeado de cabelos principescos, que a fariam passar por uma diva em férias, o ar doce com que se debruçava à janela a falar com avizinha, a quem pintava o cabelo, com as suas mãos de homem que conheciam o fazer das mãos de mulher.

Não sei porque veio para este país pequeno e pouco tolerante, apesar das aparências, talvez para ficar longe dos que a amavam fosse ela quem fosse, talvez para se pôr à prova, talvez atrás do sonho europeu...

Sei que um dia tropeçou na vida. Irremediavelmente. A droga, a prostituição e a sida fazem um triângula perfeito, para quem tropeça assim, numa espécie de morte que já não altera muito a condição da vida (?).

Há hiatos nesta história, mas a Gisberta, um dia, deixou de importar consigo, gastou as botas até ficarem cambadas, abandonou os cabelos que lhe enfeitavam o olhar e passou andar rente às paredes, para ninguém a ver. Por falta de pagamento, foi andando de quarto em quarto, de rua em rua, de beco em beco, até chegar àquele poço inacabado onde restos de pessoas se acolhiam.

A sua paz não durou muito, porque os "putos" a descobriram e acharam importante mostra-lhes o seu pseudomachismo, cuspir-lhe na cara, usá-la como coisa. Um lixo, comparada com eles, que tinham casa, mesa e roupa lavada. Um lixo que eles nunca haviam de ser, apesar das mães e os pais os terem armazenado naquela casa grande onde sentiam medo e solidão. Um trapo, uma bola de ninguém em que todos podem chutar.

O "verdadeira" óbito dentro do poço é, realmente, de uma exactidão impressionante e hipócrita. Gisberta foi maltratada até à morte, repetidamente, por meninos pequenos com muita morte dentro deles. (Tivesse sido um cidadão português com os impostos em dia, o desfecho do caso teria sido bem diferente, mas, temos de comprender, travesti e brasileira, oque é que nós temos que ver com isso?).


Resta-me a consolação de presentir que Gisberta não morreu só daqueles maus tratos. Morreu muito antes, numa porta qualquer em que perdeu a esperança. Morreu sem ajuda, sem ninguém que lhe acudisse, ao ouvi-la gemer e chorar, sem ninguém que lhe desse a mão. Por pena, nem que fosse.
Gisberta morreu porque não havia humanos por perto, na hora da sua morte. Morreu em plena travessia do deserto de que são feitos a solidão e o esquecimento.


armandina maia

domingo, novembro 26, 2006

Mário Cesariny, lugar de exílio claramente iluminado

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poema podendo servir de posfácio

ruas onde o perigo é evidente
braços verdes de práticas ocultas
cadáveres à tona de água
girassóis
e um corpo
um corpo para cortar as lâmpadas do dia
um corpo para descer uma paisagem de aves
para ir de manhã cedo e voltar muito tarde
rodeado de anões e de campos de lilases
um corpo para cobrir a tua ausência
como uma colcha
um talher
um perfume


isto ou o seu contrário, mas de certa maneira hiante
e com muita gente à volta a ver o que é
isto ou uma população de sessenta mil almas devorando almofadas escarlates a caminho do mar
e que chegam, ao crepúsculo,
encostadas aos submarinos


isto ou um torso desalojado de um verso
e cuja morte é o orgulho de todos
ó pálida cidade construída
como uma febre entre dois patamares!
vamos distribuir ao domicílio
terra para encher candelabros
leitos de fumo para amantes erectos
tabuinhas com palavras interditas
– uma mulher para este que está quase a perder o gosto à vida – tome lá –
dois netos para essa velha aí no fim da fila – não temos mais –
saquear o museu dar um diadema ao mundo e depois obrigar a repor no mesmo sítio
e para ti e para mim, assentes num espaço útil,
veneno para entornar nos olhos do gigante


isto ou um rosto um rosto solitário como barco em demanda
de vento calmo para a noite
se nós somos areia que se filtre
a um vento débil entre arbustos pintados
se um propósito deve atingir a sua margem como as correntes da terra náufragos e tempestade
se o homem das pensões e das hospedarias levanta a sua fronte de cratera molhada
se na rua o sol brilha como nunca
se por um minuto
vale a pena
esperar
isto ou a alegria igual à simples forma de um pulso
aceso entre a folhagem das mais altas lâmpadas
isto ou a alegria dita o avião de cartas
entrada pela janela saída pelo telhado
ah mas então a pirâmide existe?
ah mas e então a pirâmide diz coisas?
então a pirâmide é o segredo de cada um com o mundo?


sim meu amor a pirâmide existe
a pirâmide diz muitíssimas coisas
a pirâmide é a arte de bailar em silêncio


e em todo o caso
há praças onde esculpir um lírio
zonas subtis de propagação do azul
gestos sem dono barcos sob as flores
uma canção para ouvir-te chegar

Mário Cesariny

http://portugal.poetryinternationalweb.org

http://infinito-pessoal.blogspot.com

sábado, novembro 18, 2006

a espada do rei salomão

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Lou, House of hands

A miúda estava especada no meio da rua, a dois passos da Escola, a olhar para o chão como se esperasse dali alguma salvação. O pai, desabrido e choroso, agitava os braços em todas as direcções e não parava de acusar: a mulher, por lhe ter roubado a filha. A filha, de onze anos, por não saber dizer que não à mãe. A mulher, que estragava a miúda com todos os vícios do mundo. Chorava entretanto, a meio das frases, como um soluço, para dizer que gostava muito dela. Leia-se da mulher. Aquele homem estava só, sem mulher e sem filha, e nem os muitos copos que dava sinal de ter engolido avidamente lhe atenuavam a dor.
Com aquela perda, arrastaram-se para a superfície todas as outras: no trabalho, os polícias, seus colegas, que o queriam tramar, os bandidos que rondavam a saia da mulher para a ajudarem a perder-se. E ele, o salvador de vidas, o que arriscava tudo pelos outros, estava ali como um pobre diabo, um sujeito que inspira alguma compaixão aos outros, pelo desespero caótico que soltava, nos gestos, na voz, nos tímidos choros brandos.
E a miúda ali especada, a ver a mãe a outros dois passos, com um ar levemente irónico a aflorar-lhe as pupilas e uma voz dura que dizia suavemente “Devias beber menos”, para fazer o pai recomeçar o jogo de desnorte, a ladaínha das batalhas perdidas, a fúria da dua castração e impotência.
Nem a doçura da filha os demovia. Nenhum dos dois a afastou da cena, nenhum amor superou o gozo e a dor de se agredirem mutuamente através dela.
A a miúda ali especada, a dizer-me “Eles zangaram-se e eu, estou aqui”. A mais, pensei eu. Só espero que ela nunca venha a descobrir.
Na rua, a dois passos de todos nós, um amolador de tesouras e navalhas soltava a sua melodia, inconfundível, a lembrar-nos um tempo em que todos pensávamos que ser feliz estava a dois passos de distância.

armandina maia

quarta-feira, novembro 01, 2006

eu fico-me pelo ranger do silêncio que se fez à sua volta


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Num dia em novembro damos pela sua presença que tínhamos como certa no tempo em que decoravam os cenários familiares. Achávamos que eram eternos e os sentimentos eram às vezes escassos. Uma pouquidão crescia, muitas vezes, como se receássemos mostrar-nos, na nossa fraqueza. Um dia, deixámos de os ver à nossa volta, e estranhamos, até às lágrimas. Mas, um dia de novembro, iremos sentir-nos pequenos diante dos que saem regularmente de suas casas e, seja ou não novembro, vão pôr-lhe flores frescas e conversar com eles. Como se fizesse parte das suas vidas.
Eu só os lembro, tímida demais com esses outros gestos e fico-me pelo ranger do silêncio que se fez à sua volta, a ler e reler o que os outros disseram, ciente como nunca da minha infinita fragilidade.

Em Novembro inicia-se o retorno
dos mortos mais longínquos. Dos que se iam
esquecendo do seu corpo,
ao mesmo tempo que ver-nos se lhes ria.
Somente estavam longe porque os olhos
com que os amáramos tinham
o volume perdido do seu morno
amor; ou da alegria
com que crescendo fôramos no outono
da sua ausência sapientíssima.
De resto, andavam próximos. Os olmos
quase que só escondiam
andarmos a acordar aos poucos
à vigília.
Mas, em Novembro, os corpos,
com toda a sua transparência, vinham
abrir o lugar; lustrar os copos
que o Natal da mesa alargaria
em paisagens atónitas, que todos
andaríamos vendo. E que nos viam
andar por elas dentro. E pelo próximo
retorno que em Novembro se inicia.

Fernando Echevarría, Sobre os mortos

sábado, outubro 21, 2006

o céu abre-se ao meio/ e cai-me no regaço

http://www.pbase.com/adalberto_tiburzi/image/50743683


Um lapso à escuta
1
Não há exaltação
este novelo de sombras
e nos ouvidos
a carne descansa o seu
abecedário.
Tornei-me este planeta por ofício.
Alguns colegas pedem: capelas,
luxos, alquimias.
E outros puxam, palavra
por palavra,
peixes de silêncio.
São atletas de Deus.
E eu confirmo.
também já conheci
os mais puros exercícios
do espírito.
E eu ainda: devagar,
em órbita fechada,
no tempo,
o melhor templo.
2
Inclino na folha
a imprecisão de Deus
Quieto na idade
eu já ouvira
o verbo feito luz
Tacteio o nome
incerto
Fixo o lamento
para a eternidade
3
Na sala ouvia os animais
que nunca vira
e a mão de Deus
batia nos pinhais
Estou só e cheio
do pavor do espaço
o céu abre-se ao meio
e cai-me no regaço
Tão feminino
seu gesto na brancura
dá-me o destino
a troco da loucura


Armando Silva Carvalho, As Escadas não têm Degraus

http://poesiaseprosas.no.sapo.pt/

domingo, outubro 15, 2006

(d)esse campo minado a que chamamos destino




















Outubro

Caroço de tempestades,
Nó de cobras ardentes,
Este é um mês de chuvas cálidas
E de ventos.

Subversivo ao calendário,
Fruto amargo
Na colheita ancestral.

É sempre outono
Em outubro,
É sempre vento.

Nenhuma cintilação,
Somente o escuro

E no escuro esta sombra,
Graciosa e febril,
Dançando à luz dos raios

— o canto áspero
E o pescoço
Carregado de contas.

É sempre guerra
Em outubro,
Sempre vermelho e azul.

Sempre pendões na ponta
Das estacas
Desse campo minado
A que chamamos destino.

Miriam Fraga, Brasil

quarta-feira, outubro 11, 2006

recolher obrigatório

Infelizmente/ a cicatriz/ já não te desfeia
José Craveirinha

Não sabia que força a sustentava e impelia a enfrentar as manhãs monocórdicas e sem mistério onde tinha mergulhado naquele dia, em que o sol começou a parecer-lhe demais para os seus olhos carcomidos. Niniguém os via assim, ludibriava a todos com o seu ar espantado e límpido, mas já nada a encantava como dantes e o riso tinha desaparecido para sempre de dentro de si. Para sempre? Alguma coisa, em nós, se parte, ao ponto de dizermos para sempre? Não sabia, nem a incomodava a resposta. Sabia que os dias ensombrados se perfilavam como um muro intransponível, árvores cerradas como perfis humanos de silêncio.

Um recolher obrigatório a trazia envolta em si mesma, sem que nada do exterior a fizesse voltar à tona. Afogava-se assim lentamente, embora chorando cada vez menos, pois as lágrimas de longo curso impediam-lhe os movimentos e normalidade. Fora então que aprendera aquele gemido que cada vez menos se ouvia, e soltava umas lágrimas como se espremesse os olhos da poeira. Depois continuava, como poeira tudo fosse. E era.

Precisava talvez da mãe, a que ainda gostaria de salvar da escuridão do esquecimento, talvez pudessem as duas perceber em que nó de mudez se tinham tornado longínquas e sofredoras com a distância. Tinha ouvido, nesse mesmo dia, uma mulher, na rua, falar à mãe com impaciência, a roçar a hostilidade. Lembrou-se de quantas vezes tinha falado assim, como se já lhe fosse tudo insuportável. Não sabia,nesse tempo, que tudo, mas tudo, pode ser de uma falibilidade monstruosa, e que uma voz de mãe é como uma casa aquecida quando tudo gelou.

Nada a devolvia à integridade de alegria de que se tinha feito parteira ao longo de anos, em que inventara palavras, gestos e risos para ela mesma e para quem estava em seu redor.Alimento mais escasso do que muitos pensavam. Às vezes, era preciso ir muito fundo até encontrar o resquício que dava para alimentar a ilusão. Depois, começava o jogo do recolhimento e nele ficava até ser obrigada a asssitir alguém, com o seu riso e o seu olhar de espanto permanente.

Agora, talvez com alguma paz, permitia-se baixar o olhar e não fingir nada. A voz era pouca para alimentar conversas e risos. Mecanicamente levantava-se e preparava mais um círculo na jaula em que movia. Lentamente, sem coragem nem nada, percorria as vezes necessárias até o ciclo do dia se fechar e os outros darem por terminada a sua prestação quotidiana.

Só os amigos lhe chegavam dentro, comovidos e ilesos de pecado, contornavam-lhe os passos e lembravam-na como era, como fora, como queriam que fosse. Para sempre. Este para sempre era afinal possível e exacto. Como o amor ou o ódio que não se cura, como o esquecimento que se intala na mente, como este bem querer que habitava alguns dos seres que lhe partilhavam a vida, e a renovavam por si, na sua vez, até que ela de novo acordasse.

armandina maia

sábado, outubro 07, 2006

fronteiras ao acaso

aos putos, que não sabem onde mora a porta do futuro

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fotografia de Paulo Spranger


Quando perceberam que as casas estavam vazias e que nada sabiam sobre o mundo em volta, começaram a construir uma família, que começava pelos gatos e acabava nos cães. Isto foi quando deram de caras com os reality shows e umas opiniões vagas sobre o estado do país, que parecia ruir como um castelo de cartas.

Todos tinham ouvido falar das conquistas do 25 de abril, mas o desencantamento dos pais mais parecia à beira de um abismo. Aliás, com excepção dos telejornais que passavam nos intervalos do futebol, nenhuma notícia do mundo lhes chegava aos ouvidos.Por isso se fechavam numa mudez difícil de perceber, que dava muito dinheiro a ganhar, entre divãs de psiquiatras, psicólogos e gentes de outros saberes misteriosos.

Como num puzzle, todos estavam no espaço certo: era só preciso saber encaixar as peças no vazio. Vazias. Eram assim todas as casas, sem cheiro de cão nem de comida.Os pais não. Dificilmente seriam vazios, porque lhes tinham dado vida e algum carinho. Muitos, porém, mal disfarçavam como era difícil entender aquele modo de estar na vida, sem “furar” pelo meio dos outros, à procura de uma oportunidade de aparecer na televisão. Dos pais não queriam falar com ninguém, apesar das noites compridas lhes desenharam olheiras antes do tempo. Dos pais não queriam falar com ninguém, apesar de continuarem a desenhá-los como quando eram pequeninos, de mãos dadas e a gostarem muito um do outro. Se discutiam, não ouviam nada, era como se fosse um filme. Tudo ia acabar bem e a casa ficaria em ordem, outra vez, com toda a gente abraçada.

E depois, havia a televisão. Tapava tudo. Todas as bocas, nem se ouvia o silêncio dos garfos que empurravam a comida para as bocas, silenciadas. Às vezes em suspense, quando o jantar tardava e comiam ao som do survivor ou dos ficheiros secretos? Abençoada televisão, que não deixava ninguém falar, e assim notava-se menos aquela saudade dos abraços, dos beijos à hora de ir para a cama.

O que mais os fascinava, eram os filmes que alugavam nos clubes de vídeo, uma espécie de cinema em casa que ninguém parecia proibir. Ficavam horas à roda da ideia, e alugavam-nos mesmo que não os vissem ou os deixassem dias e dias em cima das mesas, sem dono aparente. O que salvava a situação, era aquelas chamadas de atenção do club de vídeo para regularizar a conta.

Nem isso fazia os pais acordar. Ninguém via as beatas no chão, os pratos de plástico queimados, os tapetes esburacados, os pratos no lava-loiça, secos, a deitar por fora, com a máquina de lavar loiça vazia.Se entrasse alguém de repente, haviam de procurar uma desculpa para aquela desordem “a empregada está doente” ou coisa assim. Ninguém podia mostrar uma casa assim aos olhos de estranhos, nem que fosse o homem do gás.

Estranhamente, porém, tocava o despertador e a família disparava inteirinha em fila indiana, a disputar a casa de banho, trocando pelo meio alguns sinais de amor familiar: “despachas-te, ou quê?” “ lá vou eu chegar atrasado” “é sempre a mesma coisa com esta gaja”. Mesmo assim, saíam com a certeza que estavam vivos e inteiros, para depois contar bocadinhos aos amigos, que tinham todos, mais ou menos, a mesma história para contar. Horas a ouvir sermões pelas latas abertas e deixadas ao acaso, pelas embalagens vazias deixadas no frigorífico a dançar sozinhas, num estranho bailado de papel.

E sempre a televisão, aquele aparelho salvador da surdez generalizada, a vomitar informações que todos comentavam como se soubessem a verdade. Pareciam estrelas de cinema, ali, em casa, a dizer toda a verdade sobre o mundo! E eles sem saberem sequer do que se estava para ali a falar. Mais bush menos bush, mais laden menos laden, de que mundo falariam, tão longe daquelas vidas onde se sentavam todos os dias?
Com tantas viagens em família, e tantos países que conheciam, eram forasteiros como os cowboys de outros tempos: passavam, rumo às praias, compravam umas prendinhas na volta, e chegavam com um bronze que fazia morrer de inveja quem estivesse nas proximidades.

Iam e vinham, ilesos pela ignorância, e tolhidos pelo medo que os questionassem: por isso se entretinham a contar histórias banais, que aconteciam a todos. As passagens na fronteira, o tempo da viagem, a comodidade do avião. A viagem era ir e voltar: não acontecia nada pelo meio.

Eram aquelas as fronteiras ao acaso, perdidas num mapa que não conheciam como tinha nascido nem porque estava ali. Delas ficavam só umas tantas fotografias para a colecção familiar, que alguém havia de juntar, mais dia menos dia.


armandina maia

domingo, outubro 01, 2006

carta a um amigo que mora ao lado

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desenho de António Ferra

Amigo, Depois de tanto silêncio, escrevo-te para te contar de um porquê que nem eu sei, acabrunhada como ando, pelo estado do país, pelo desvario do mundo, pela infâmia que se acumula por toda a parte, como se fizesse parte de um ecosistema. Talvez por isto ou porque os anos, de repente, caíram sobre nós como uma coisa inevitável e, apesar da tão falada esperança de vida, começamos a perder a esperança no futuro. Não queremos confessar a ninguém, nem a nós mesmos. Todos esperamos “ver” o milagre acontecer antes do nosso tempo se ter esgotado. Mas também todos sabemos que as guerras vieram para ficar e que os seres humanos continuam sujeitos, como outrora, a condições desumanas e proibidas perante todas as leis de todas as religiões: renovam-se as escravaturas e as servidões e os “salvadores” continuam a torturar prisioneiros, mostrando o seu lado hediondo e grotesco. Pensámos que tinha passado, que tínhamos uma era nova pela frente. Mas há gente vendida e emprestada, como coisas que sabemos que não são. E há gente que vai ficando sempre para trás, sem casa, sem terra, submersa por forças da natureza que os governos centrais se esqueceram de colmatar. É tudo gente, como nós, como tu e eu. Ficam anos a fio, encurralados em jaulas, com os defensores oficiais a proferirem belos discursos nos Parlamentos. E morrem. Já não se contam com exactidão, de tantos que são. Não vivemos no meio deles, é certo, mas vivemos com isto atravessado nos nossos corações e nos sonhos que desenhámos um dia. Vemos como a impunidade galga fronteiras e se instala, ultrapassando todas as regras, como um terreiro deserto onde não mora ninguém. Esta cela para onde nos arremessaram tornou-se fria e estupidamente pequena. E o céu baixou sobre as nossas cabeças. De vez em quando telefonamos aos amigos, a dizer que estamos vivos e que gostamos deles. Mas já não nos vemos com a alegria que morava em nós. Arrastamo-nos para os encontros, os jantares de aniversário, as ocasiões festivas. Mas já não nos encontramos nos cafés, nas esquinas, debaixo das árvores, a tagarelar e a rir de tudo e de nada. Cumprimos os rituais mínimos para sentir a própria pele, mas alguma coisa esfriou dentro de nós, como um peixe morto que continua no aquário. É claro que inventamos as forças necessárias para ir à luta quando é mesmo preciso. Descemos as avenidas, em bandos, até parecemos alegres. Mas depois voltamos ao canto que escolhemos, o nosso canto, de onde só saímos para trabalhar umas horas, iludindo o vazio que se apoderou de nós, como o tal peixe que só ilude o olhar. Estamos baços e lassos, amigo. Por isso te escrevo. Para explicar as minhas ausências inexplicáveis. Para me recuperar e recuperar-te. Ainda nos temos uns aos outros, a lembrar, vigilantes, que a desordem e o caos hão-de ter um fim. E que ninguém pode, por nós ou em nosso nome, continuar a algemar-nos a alegria de existir. Estamos com todos, estamos todos, estamos vivos. Estamos. Abraços. Como sempre. armandina

domingo, setembro 17, 2006

a imagem na retina

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A imagem na retina
para a minha filha Patrícia

Às vezes, quando a olhava, assim, impiamente pura, tinha medo que nunca mais crescesse ou não se soubesse soltar da fantasia. Mas tudo parecia brotar à sua volta como se ela falasse com as flores e estas crescessem, milagrosamente.
As noites eternas em que a esperava sem lhe conhecer o rasto, com o ouvido à escuta, à espera do desligar do motor do carro, da vespa, da chave na fechadura, dos passinhos em bicos de pés para não a acordar, foram-se afastando de si.
Outros espaços, próprios, a albergavam, sem drama nem lágrimas, mas com uma brutal sensação de algo de irreversível. Como o cordão, mais uma vez.
Mas, sabendo, como sabia, que estes são os caminhos da vida, nada mais fazia do que segui-la com o olhar, de longe, cada vez mais longe, até ela ficar tão pequenina que lhe cabia na retina, onde sempre a acompanhava, onde quer que fosse.
Deu consigo, muitas vezes, a contar coisas desconhecidas a gente desconhecida, desta filha que, muito provavelmente, lhe dava colo, mesmo no meio das lágrimas e discussões, mesmo quando tudo parecia sem retorno no horizonte.

As partidas deixavam-nas devastadas, como se um vulcão tivesse varrido para sempre os mimos, os bilhetes sem fim, as surpresas, as esperas, as insónias, os dias e noites em que maldisse a sua vida, com aquela filha da aventura e do desassossego, que lia sem parar e sem norte, chorava um mar de lágrimas brandas pelos amigos que deixava para trás e desafiava a vida com um prazer renovado, que parecia perpétuo.
Sabia já muito menos do seu rumo: contentava-se com o tempo de mãe de filha adulta. Sentia-lhe a falta, mas não queria ofender a sua nova integridade. Sabia que o seu tempo tinha passado. Como também sabia que a esperaria eternamente, mesmo eternamente.
O seu coração mantinha intacto o fio do primeiro dia. Por isso, guardava tudo o que lhe pertencia e acariciava-a na alma, por dentro, onde ninguém via. Continuava a conhecer-lhe a voz e a adivinhar-lhe a tristeza. E sonhava com felicidade dela como um bilhete de lotaria.
Por isso a esperava eternamente, para voltar a abraçá-la e se fazer perdoar pelo tempo que sobrevivera longe dela e do seu colo quente de filha.
Para sempre.

armandina maia, um modo de dizer "parabéns", a 16-09-2006.

domingo, agosto 27, 2006

quando a paisagem é um deus que arde

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A paisagem dissolvia-se num imenso abate de árvores. A terra queimada, terra batida agora, quase aliviava os corações dos que tinham hesitado em deixá-las, as terras, as casas, os animais, tudo o que antes, ainda há pouco, fora a sua morada. Às vezes desde o berço. Às vezes era aquele, só, o mar, a terra e o ar que tinham por mundo.
Custava ver soltar-se aquele fio que os prendia à vida, desatar-se, sem um nó sequer de resguardo. De repente, tudo se perde e se espalha, solto, avulso: E eles a lutar pela vida, como animais de sobrevivência que são, afinal.

Noutras paragens, gente quase nómada, tão diferente e tão igual, pede refúgio, aos milhares, a abandonar casas também queimadas por guerras de senhores que, às vezes, nem sabem bem o que lá foram fazer, perdidos em agendas de escala internacional, entre um e outro vôo.
A contrastar com as formalidades “da ajuda”, sente-se a frieza dos homens que desenham discursos sobre a dança de morte das pessoas, e até dão acenos de salão de baile, com direito a improviso de piano, enquanto se preparam para os apertos de mão em que se derretem as possibilidades de travar seja que batalha for.

Onde estarão, agora, os animais feridos, perdidos, os cães de guarda que dormiam a sono solto à porta das moradas dos donos?
Quando cairão de vez os cavalos queimados, a vaguear sobre o chão de fogo, de olhos mortos e cegos, que se atravessavam à frente da câmara do repórter, a arder de dor, de cegueira e de perda?

Ainda altos e esguios, ainda superiores no seu modo brando de mover a cabeça devagar, como esperassem a mão amiga do dono, a sussurrar-lhes palavras de conforto e amparo. Ainda o palpitar de um coração agora em chamas, mas já árvores abatidas, como tudo em volta, sem vida, sem norte, sem morte sequer?


Armandina Maia, Moledo/Cerveira, Agosto de 2006.

quarta-feira, agosto 16, 2006

como se nada ali tivesse existido

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Como se nada ali tivesse existido.

A praia assim não tem aquele ar violento que lhe dá o mar cavado, a pique, com aquela montanhas de pessoas a gritar perante a investida das ondas.
A praia desta hora tem uma faixa extensa, seca, longa e larga, onde se desenrolam cenas familiares que, de tão ternas, apetece reter para sempre: o pai e o filho adolescente que marcam com os pés na areia molhada o seu campo, o terreiro com baliza e tudo. A fila de velhotas que esperam, com uma espécie de túnica meio-levantada, a chegada do mar que lhes há-de molhar os pés e os ossos desarticulados e doridos. Os putos do surf, ainda no princípio, que só de vez em quando se conseguem erguer sobre a prancha, de onde lhes parece que o mundo é deles, apesar de saberem do perigo que os ronda, com o mar a arrastar as pranchas para longe, cada vez mais longe e com mais força.
E as meninas, curiosamente mais as meninas, a construir afincadamente castelos na areia, com pontes e ameias, passagens subterrâneas que o mar de vez em quando visita, derrubando parte do edifício, perante o desespero dos construtores. A engenharia é cuidada pelos pais, embalados pelo sonho de criança, e agora pelo das crianças que são seus filhos, aplicando-se todos na obra que o mar há-de varrer, numa pazada de água seguida de umas quantas, até alisar a areia, como se nada ali tivesse existido.
Do cenário, ficam só os sons de alegria dos meninos, a saltar dentro do castelo imaginário, gritos que nos trespassam a indiferença com que nos deitamos na areia, alheios a tudo.

Longe dali, neste mesmo planeta, outras crianças gritam perdidas, a sentirem a vida fugir, os pais a desaparecer por entre sulcos que o chão abre. Os (tele)jornais delas darão as notícias necessárias, em números todos os dias acrescentados, entre os civis que os senhores da guerra matam para acertarem num alvo que nem sequer sabemos se existe.
Se calhar é só um castelo como os de areia, que os seus olhos cobertos pela cegueira e sede de poder, tranformam em império. Um deserto de refugiados, um deserto de morte e de terror é o seu espólio, destes guerreiros apátridas que já não se lembram de uma razão para estar ali.
Aqui, como na areia dos castelos românticos, tudo irá ruir, a esperança, a dor, a esperança sobretudo e a vida não se renovará como por encanto. Como se nada ali tivesse existido.

armandina maia
moledo do minho, agosto 2006

sábado, julho 22, 2006

férias: forget me not!



Vou de férias até 15 de agosto, se aguentar, porque o meu corpo desabituou-se destes carinhos.
Não se esqueçam de regar as plantas e falar com os pássaros ou outros animais que habitem a vossa casa ou, simplesmente, a berma das ruas solitárias.
abraços

armandina


De quatro paredes restaram as pedras (...) vento e silêncio as atravessam e nelas não dura a memória

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Pátria

Um caminho de areia solta conduzindo a parte
nenhuma. As árvores chamavam-se casuarina,
eucalipto, chanfuta. Plácidos os rios também
tinham nomes por que era costume designá-los.
Tal como as aves que sobrevoavam rente o matagal

e a floresta rumo ao azul ou ao verde mais denso
e misterioso, habitado por deuses e duendes
de uma mitologia que não vem nos tomos e tratados
que a tais coisas é costume consagrar-se. Depois,
com valados, elevações e planuras, e mais rios

entrecortando a savana, e árvores e caminhos,
aldeias, vilas e cidades com homens dentro,
a paisagem estendia-se a perder de vista
até ao capricho de uma linha imaginária. A isso
chamávamos pátria. Por vezes, de algum recesso

obscuro, erguia-se um canto bárbaro e dolente,
o cristal súbito de uma gargalhada, um soluço
indizível, a lasciva surdina de corpos enlaçados.
Ou tambores de paz simulando guerra. Esta
não se terá feito anunciar por tal forma

remota e convencional. Mas o sangue adubou
a terra, estremeceu o coração das árvores
e, meus irmãos, meus inimigos morriam. Uma
só e várias línguas eram faladas e a isso,
por estranho que pareça, também chamávamos pátria.

De quatro paredes restaram as pedras. Com as folhas
de zinco e a madeira ferida dos travejamentos
perfaziam uma casa. Partes de um corpo
desmembrado, dispersas ao acaso, vento e silêncio
as atravessam e nelas não dura a memória

que em mim, residual, subsiste. Sobre escombros
deveria,
talvez, chorar pátria e infância, os mortos que
lhe precederam a morte, o primeiro e o derradeiro
amor. Quatro paredes tombadas ao acaso
e isso bastou
para que, no que era só mundo, todo o mundo
entrasse

e o polígono demarcado, conservando embora
a original configuração, fosse percorrido por
um arrepio estrangeiro, uma premonição de gelos
e inverno. Algo lhe alterara imperceptivelmente
o perfil, minado por secreta, pertinaz enfermidade.

Semelhante a qualquer outro, o lugar volvia meta
e ponto de partida, conceitos que, como a linha
imaginária,
circunscrevem, mas de todo eludem, o essencial.
Ladeado de sombras e árvores, o caminho de areia,
que se dizia conduzir a parte alguma, abria

para o mundo. A experiência reduz, porém,
a segunda à primeira das asserções: pelo mundo
se alcança parte nenhuma; se restringe ficção
e paisagem ao exíguo mas essencial: legado
de palavras, pátria é só a língua em que me digo.

Rui Knopfli, Memória Consentida, 1982

http://ciberduvidas.sapo.pt/antologia/knopfli.html

sexta-feira, julho 21, 2006

os pássaros também têm morada

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Do cenário, tornado habitual aos nossos olhos alheios e domesticados, a câmara fixava um ou outro objecto, um rosto sem pertença, a "apagada e vil tristeza" de quem ali vivia.
"Destroços" é palavra pouca em sentido e perda, não cabe nela a dor dos que se tinham lançado à estrada, deixando tudo para trás, num gesto que ficará nas suas memórias, para sempre, como uma morte, que realmente (também) é, o abandono do lugar onde se mora, se cresce e até se nace, sem o poder salvar, sem agarrar nada: a cama onde se dorme, as tábuas do chão que pisamos, às vezes a vida inteira passarinhar em cima daquele chão.

O cenário, como já disse, está morto, é a morte. Sem que nada se mova, entre a desolação que se pressente e a vontade de nos afastarmos, para não ver mais, ergue-se um homem no meio da cena. Como no teatro, entra este personagem vivo.
Um homem alto e magro, comum em tudo, decidido no passo, avança e galga os destroços sem os olhar, se calhar até sem os ver. Caminha direito a um ponto fixo, de que não afasta os olhos nem os passos que o conduzem ao não-lugar.

É então que pára e segura na sua mão direita, uma caixa grande, levíssima, que ele ergue como uma pena, acima do pantanal que lhe envolve os pés. Ergue-a mais acima, ao nível do rosto e, num olhar rápido, vê se ela está intacta. Temos mesmo a impressão que pronuncia umas breves palavra aos seres que a habitam.

Depois, retoma a viagem de regresso, passo longo, decidido, como antes. Agora, porém, o seu coração está menos desabitado, com o calor dos pássaros que salvou da morte.
Nunca esqueçamos os pássaros nem as suas moradas: às vezes, é nas mãos deles que está a nossa salvação.


armandina maia

sexta-feira, julho 14, 2006

alexandre, o grande o'neill português





O Tempo sujo

Há dias que eu odeio
Como insultos a que não posso responder
Sem o perigo duma cruel intimidade
Com a mão que lança o pus
Que trabalha ao serviço da infecção

São dias que nunca deviam ter saído
Do mau tempo fixo
Que nos desafia da parede
Dias que nos insultam que nos lançam
As pedras do medo os vidros da mentira
As pequenas moedas da humilhação

Dias ou janelas sobre o charco
Que se espelha no céu
Dias do dia-a-dia
Comboios que trazem o sono a resmungar para o trabalho
O sono centenário

Mal vestido mal alimentado
Para o trabalho
A martelada na cabeça
A pequena morte maliciosa
Que na espiral das sirenes
Se esconde e assobia

Dias que passei no esgoto dos sonhos
Onde o sórdido dá as mãos ao sublime
Onde vi o necessário onde aprendi
Que só entre os homens e por eles
Vale a pena sonhar.

Alexandre O'Neill, No Reino da Dinamarca, 1958.

quinta-feira, julho 13, 2006

é belo que um rio guarde / a cor dos sacrifícios




Marlene Dietrich
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BOA MEMÓRIA

Se cortassem o Danúbio às fatias
ninguém veria uma mutilação.
A água abre-se em duas
e refaz-se maI o corte finda.
Só que o azul se tinge
do suor da lâmina.
Mas é belo que um rio guarde
a cor dos sacrifícios.


Fernando Namora, Marketing, 1969.

sexta-feira, julho 07, 2006

alfonsina

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os heróis possíveis para um país a precisar de muitos heróis para ser gente

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Mercedes Soza canta Los Hermanos
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1. Eu também me grudei no televisor, primeiro a torcer o nariz, muito crítica, muito (cons)ciente dos maus dinheiros que giram por baixo das mesas nas bancas do futebol. Até escrevi o Hino, qual hino?

2. Mas, por medo de ficar excluída (hipótese pouco provável, dado o meu longo traquejo em saber o que não quero) ou por, simplesmente, querer ver Portugal subir um degrau, qualquer que fosse, em terras europeias -pois era disso que se tratava, a certo ponto - acabei por passar boa parte do tempo como qualquer mortal: à espera do jogo. O último, dizia para mim, a serenar ânimos sebastianistas e assim acaba-se a espera e a esperança. Enquanto dizia isto, a esperança crescia, como um polvo.

3. Lembrei-me do Eusébio, a chorar de raiva, um touro diante de uma grande gaiola que era o mundo para o pequeno império português de onde vínhamos. Foi há quarenta anos. e, no meio de muitas recordações que o meu cérebro apagou instantaneamente num dia fatal (que fica para depois), lembro-me com nitidez de todo o jogo, dos cantos, do milagre que, se calhar, havia na dobra da esquina.

4. O futebol daquele tempo não está fora de moda. Foi o futebol do nosso tempo que se tranformou numa palavra passe com acesso permanente a jogo sujo, dinheiro, sujo, vida suja. Não são os jogadores que são assim: é o sistema, o comércio, os saldos de homens como se de bestas ainda se tratasse, os heróis que se esquecem, porque a imprensa não andou de olho neles (veja-se o "tratamento" dado a Miguel, neste Campeonato", os heróis intocáveis a quem nunca se aponta o dedo, mesmo que as imagens nos devolvam falhanços claros (que claramente acontecem a todos!).

5. Persegue-me esta mania de explicar tudo: de onde vem a mística do futebol, que segredo guarda para mover montanhas?
Temos que aprender a fazer o mesmo com as causas do país: abalá-lo, sacudi-lo, reconstruí-lo, sem nunca nos deixamos iludir pelas "boas" medidas que nos hão-de tornar um grande país.

6. Portugal NÃO É um grande país. É um país que viveu acima das suas posses durante séculos, até aprender a manha de não trabalhar, do biscate, do desenrascanso, das férias entre duas pontes, na vidinha de cada um como se ninguém fosse de todos.

7. Agora temos tudo o que há na Europa, até futebol sem jogo, como se viu, com resultados previsíveis, como também se viu. Temos também banda larga, embora grande parte do país viva num mundo por onde ela não passa. E temos fornadas de desempregados, eternos formandos, que mais não é que outra maneira de escrever desemprego. E os túneis sem saída. Os ordenados de miséria, as pensões que nos deviam fazer baixar os olhos quando nos cruzamos com uma velhota pobre e triste, mas sobretudo pobre, os remediados, as contas adiadas, as insónias por causa das contas adiadas, do trabalho que não há, dos empresários que fogem pela porta grande, dos empregos comprados, com cunhas do pai que é motorista do patrão, com olhares distraídos à perna do chefe que encosta de mansinho na nossa, com florinhas frescas na secretária da mulher do cacau, como eu vi fazer, anos a fio.

8. Um dia destes ponho-me a contar a história destes futebóis, que ninguém está ver, mas que temos que saber que existem, nesta Luz de Presença, vigilante ao roubo perene da vitalidade, empenho e audácia dos portugueses.

9. Não foi a Selecção que perdeu o jogo. Foram as muitas governações desgovernadas que perderam a jogada, por não terem (ainda) conseguido criar uma imagem digna para este país que exporta há décadas o seu bem mais precioso: mão de obra barata, que aprende depressa e pinta a manta a trabalhar, competindo com os "da terra", embora sem reconhecimento, de cá nem de lá. Como disse, muito sincero, muito lábil, mas muito bem, Cristiano Ronaldo, somos um país humilde.

10. Só mesmo por milagre Portugal conseguiria, em terreiro alheio, venver/ bater as manhas, as piscadelas de olho.
Lá fora, somos não só um país humilde, mas um país que ninguém sabe muito bem onde fica, que língua fala. Uma gentinha gentil e acolhedora, é certo, mas que não sabe onde é o seu lugar. Por isso está ali a mais, à mesa de um jogo que já não lhe pertence: é dos poderosos que tecem campanhas há séculos a sonhar grandezas e a roubar as dos outros como podem.


armandina maia

quarta-feira, julho 05, 2006

epitáfio para o século XX, um século em se pisou na Lua e se morreu de fome

Turner, Burial at the sea



Leonard Cohen canta "Like a bird on a wire" de Songs from a room
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ver também aqui

Epitáfio Para o Sec. XX

1.Aqui jaz um século
onde houve
duas ou três guerras
mundiais e milhares
de outras pequenas
e igualmente bestiais.

2.Aqui jaz um século
onde se acreditou
que estar à esquerda
ou à direita
eram questões centrais.

3.Aqui jaz um século
que quase se esvaiu
na nuvem atômica.
Salvaram-no o acaso
e os pacifistas
com sua homeopática
atitude
-nux vômica.

4.Aqui jaz o século
que um muro dividiu.
Um século de concreto
armado, canceroso,
drogado, empestado,
que enfim sobreviveu
às bactérias que pariu.

5.Aqui jaz um século
que se abismou
com as estrelas
nas telas
e que o suicídio
de supernovas
contemplou.
Um século filmado
que o vento levou.

6.Aqui jaz um século
semiótico e despótico,
que se pensou dialético
e foi patético e aidético.
Um século que decretou
a morte de Deus,
a morte da história,
a morte do homem,
em que se pisou na Lua
e se morreu de fome.

7.Aqui jaz um século
que opondo classe a classe
quase se desclassificou.
Século cheio de anátemas
e antenas, sibérias e gestapos
e ideológicas safenas;
século tecnicolor
que tudo transplantou
e o branco, do negro,
a custo aproximou.

8.Aqui jaz um século
que se deitou no divã.
Século narciso & esquizo,
que não pôde computar
seus neologismos.
Século vanguardista,
marxista, guerrilheiro,
terrorista, freudiano,
proustiano, joyciano,
borges-kafkiano.
Século de utopias e
hippies que caberiam num chip.

9.Aqui jaz um século
que se chamou moderno
e olhando presunçoso
o passado e o futuro
julgou-se eterno;
século que de si
fez tanto alarde
e, no entanto,
-já vai tarde.

10. Foi duro atravessá-lo.
Muitas vezes morri, outras
quis regressar ao 18
ou 16, pular ao 21,
sair daqui
para o lugar nenhum.

11.Tende piedade de nós, ó vós
que em outros tempos
nos julgais
da confortável galáxia
em que irônico estais.
Tende piedade de nós
-modernos medievais-
tende piedade como Villon
e Brecht por minha voz
de novo imploram.
Piedade dos que viveram neste século
per seculae seculorum.

Affonso Romano de Sant'Anna

Ainda em tempo de futebol, sem esquecer o país em riscos de ser só litoral

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Sem indicação de data ou autor




Chico Buarque, canta Futebol
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1. Os governantes estão desesperados com a situação portuguesa. Por isso multiplicam leis, mas continuam sem nos mostrar em que buraco se enfiaram os recursos económicos de que Portugal dispôs nos últimos anos.
2. Sócrates partiu para esta governação com uma ideia que “colhia” os frutos do desespero dos eleitores: temos todos consciência de que não podemos continuar a gastar o que não há e, o que é mais espantoso, sem proveito que se veja.
3. A questão não é nova: bastará reler algumas passagens de há dois séculos atrás, para comprendermos quanto o país precisa de uma reordenação total em todos os sectores, de uma requalificação transversal e impiedosa, de (finalmente) premiar o mérito, a competência e o rigor como um capital capaz de tecer a rota do futuro.
4. O terramoto de 1755, com a sua dimensão catastrófica, teve a vantagem de dar ainda maior espaço a um homem temível mas audacioso: Pombal não só reconstruiu o país como gizou coordenadas para um incipiente sistema educativo.
5. No amontoado de notícias avulsas que a governação diariamente emite, a ideia com que ficamos é que, passado este “aperto”, a população portuguesa poderá finalmente viver com a dignidade a que tem direito, sem aquele ar de parente pobre que sempre nos acompanha ao sermos confrontados com os outros.
6. O dinheiro acabou. Só mesmo as scuts ficaram, numa birrazita que não tira nem dá nada a ninguém. Tudo o resto voou.
A culpa é dos suspeitos do costume: uma multidão de funcionários, admitidos regular e irregularmente, que gastam o dinheiro todo dos contribuintes. Nunca, porém, ouvi um único comentário que perguntasse quem teve a ousadia de continuar a admitir tarefeiros, assessores, secretárias a triplicar, consultores, etc., etc., etc., sem primeiro se socorrer da prata da casa, dar-lhe formação continuada e criar equipas de trabalho com auditorias externas regulares.
7. O dinheiro acabou. Mas o pior de tudo é que não foi só roubado. Foi exterminado, mal gerido, desviado, esbanjado numa loucura generalizada por um grupo de gente de honestidade moral e intelectual duvidosa, de todos os quadrantes políticos.
8. O dinheiro acabou? Faça-se dinheiro. Abram-se as portas, mesmo sem saber a quem e, claro, corta-se aos pagadores da dízima: no ordenado, nos benefícios, no pouco e no muito.
9. O dinheiro acabou? Fecham-se os hospitais, as maternidades, as fábricas. E as escolas. Os prejuízos, dizem ainda os governantes, são incomportáveis.
(Mas então não se percebe que nas escolas despovoadas, nos hospitais com poucos doentes, nas maternidades sem parturientes, nas escolas despovoadas se poderia construir um sentimento de orgulho pelo investimento da governação no interior do país?)
10. Ficamos como touros enjaulados, a ver a avidez e a mediocridade tomar o lugar dos homens bons deste país, do interior e do litoral.

Do país “todo” que nós somos e que querem desmembrar como se de uma boneca de trapos se tratasse.

Maria Armandina Maia

terça-feira, junho 27, 2006

Da pintura ao futebol (passando pela net, pela street art e por tudo o que ainda não descobrimos)

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Poul Hans Lange



Villa Lobos
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Em tempo de inaugurações por toda a parte (da capital, entenda-se, que do resto do país só se sabe o que sobra em espaço noticioso), e da quase mitológica ascenção do futebol à condição de CAUSA do país, não seria mal pensarmos nos lugares de cultura, os sagrados, os de sempre, os de muito poucos e as suas novas formas, diante de nós, inseguras e perenes, com sinais de evidente vitalidade, de não recear o futuro, de não esmolar o subsídio. Gente com um arsenal de talento no fundo da gaveta, no sótão da casa, que o marasmo de uma elite deixa morrer todos os dias porque só se olha a si mesma. Gente incomum, que (se) diz e (se) faz. Acomodar-se-ão um dia? não sei, mas agrada-me que existam, fazem-me sentir mais pertencente ao futuro em que me sonho para não sucumbir.

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A Cultura é o diálogo da espécie humana com ela mesma e com o que a transcende. É a voz da humanidade, ao longo dos tempos, na sua máxima integridade, no confronto com o limite da sua divindade. A Cultura é o reflexo do espírito humano, no sentido da sua condição, naquilo a partir do qual nós somos o que somos até onde os seus contornos nos instalam. São as nossas constatações das nossas limitações e os nossos gritos de revolta contra essas limitações. Por isso a Cultura é tão importante, porque eleva o Homem ao máximo de si. E também por isso a Cultura nunca morrerá, enquanto houver homens haverá Cultura, porque ela é os homens, é, pelo menos, o que resta deles no fim, o que lhes sobra, o seu saldo.

João Moita (autor do blog "Escrito a sangue" e leitor deste blog)


A palavra “cultura” continua a representar um mundo do qual os cidadãos se sentem excluídos.
O desafio que se coloca neste momento é fazer da cultura um “campo aberto” a manifestações de todas as vertentes, de diferentes faixas etárias de diferentes classes e etnias.
“A cultura é de todos” terá que deixar o lugar do slogan para se tornar uma prática real e eficaz, capaz de incentivar e deixar que se gerem novos talentos, novas dinâmicas, novas competências.
numa palavra Cultura representa mais do que tudo, o fim do preconceito.

Armandina Maia


O que é a cultura? Eu respondo olhando esta escultura que está num dos lados da Catedral de S. Marcos. Nada do que ela representa existe, a não ser o doge ajoelhado. Existe? Não existe nenhum doge que se tenha ajoelhado diante de um leão. Não há na terra nenhum leão alado, com face humana, segurando um livro. O leão olha para a cidade, para o mar, o doge para o leão. Tudo é símbolo, sobre símbolo, sobre símbolo. O leão representa, como se sabe, uma abstracção: a república. A primeira palavra do livro é outra abstracção, mais desejada do que tudo, “Pax”. O doge ajoelha-se perante abstracções: o poder está no leão e não no doge, o leão fala-lhe de paz e mostra o livro aberto ao povo, que não se vê, mas vê. É isto a cultura: uma invenção da imaginação humana, contra natura, contra o terror, contra o caos, por uma ordem superior feita de um teatro de convenções simbólicas que nos protegem, e que são a civilização. Tudo muito frágil, tudo construído, tudo inventado, tudo quase no limiar de nada. O doge pode pôr-se a pé e matar o leão, ou o leão comer o doge, o livro cair para a populaça o destruir, a primeira palavra pode não ser “Pax”, mas guerra. A cultura é uma frágil defesa, mas existe. Está ali, em pedra, símbolo de obediência do homem a convenções abstractas que ele criou e que só existem quando há vontade que existam. Nada depende mais da vontade do que a cultura e a civilização. Somos nós que as fazemos, somos nós que as desfazemos.

Pacheco Pereira in Abrupto

quarta-feira, junho 21, 2006

Quando a minha avó me visitava fazia-se uma pausa no tempo

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La casita blanca cantada por Juan Manuel Serrat
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A minha avó nunca teve tempo para se sentar e olhar o rio. O tempo passara por ela muito depressa, tornara-a mais baixa, cheia de rugas, osso, mágoas e apreensão.
A minha mãe morrera, eu vivia com o meu pai, na Bica, e a minha avó andava sempre atrás de mim, perguntando-me, desassossegada, se eu comia bem: fruta, leite, bifes.
Quando desci a colina da Ajuda e me instalei naquele bairro, a meio da cidade, após uma soturna viagem de carro eléctrico, o meu pai prendeu a minha mão na sua e foi dizendo: «Gosto muito de ti. E, agora, tenho de gostar de ti duas vezes: por mim e pela tua mãe». Começámos a viver numa parte de casa. O meu pai trabalhava de noite, dormia de dia, e eu dependurava-me nos elevadores, a ocultas do revisor da Carris. Se me visse naquele propósito, dava-me com o alicate nos dedos.
Os elevadores iam do Calhariz a São Paulo. Belos nomes.
Quando a minha avó me visitava fazia-se uma pausa no tempo. Ela sentava-se no degrau da soleira da porta e contava-me as ocorrências no bairro onde nascêramos. Olhava-a com desvelo e à beleza do seu rosto majestoso, comparável ao busto de uma estátua.
O virar dos anos fez-me pensar como é que ela mantivera o porte e a teimosia da esperança, numa casa e numa família onde se chorava demasiado.
Ao despedir-se enfiou a mão na bolsa colocada por detrás do avental e deu-me umas moedas.«Come bolas de Berlim, dão grande sustentação ao corpo». A bolsa tinha a forma de um oito, com a base mais larga, e três compartimentos: para as notas, para as moedas de prata e para as de cobre. A minha avó era dona de um bom par de mãos arcaicas. Fizera renda, trabalhara numa fábrica de merino e, agora, vendia peixe. A bolsa era um artefacto de pequenos quadrados de flanelas coloridas e sobrepostas, e exalava um discreto cheiro a peixe.
A minha avó gostava de passar a mão direita, como uma carícia, na zona do avental sob a qual estava a bolsa. Dizia que o dinheiro jamais se acabaria, porque se sentia reconfortado e grato com os afagos.
A verdade é que a bolsa nunca esteve vazia para quem, na família, de auxílio precisasse.
Era uma avó que nunca procurara, na leitura, desvendar os mistérios do mundo. Aliás, lia com extrema dificuldade. Para ela, o maior de todos os poetas era João Linhares Barbosa, parente afastado, letrista de fados que falavam de sardinheiras, de amores vadios, de mulheres fatais e de ruinosas amizades.
A glória estremecida de Linhares Barbosa devia-se à circunstância de haver escrito alguns fados para Amália. Quando se cruzava com a minha avó, tirava o chapéu, num gesto ameno e circunspecto. «Um homem de grande respeito. Até vai a todos os enterros».
O Beco do Xadrez, junto ao Largo da Paz, já não existe. Um pedaço de terra entre lágrimas, e só se chegava lá com conhecimento de causa. A minha avó viveu ali uma abundância de anos. Uma casa térrea, duas divisões, uma talha com água sobre a qual permanecia um pano enorme, molhado, para manter a frescura. Acendia o candeeiro a petróleo, sentava-se à beira da cama e meditava nessa dor humilde e secreta que apenas o silêncio entende.
Nunca descortinei porque motivo uma mulher tão atropelada pela vida, tão marcada de padecimento, era conhecida pela Maria Palhaça. Entre nós, a Avó Palhaça.
A Avó Palhaça que sobrevivera a mortes, a desempregos, a afrontas infinitas sem o mais breve queixume ou a mais ligeira imprecação. A Avó Palhaça, canastra à cabeça, a subir o Aterro, pequena de tamanho, grandiosa na sua luminosa humanidade.
A Avó Palhaça, que tinha uma bolsa inesgotável, feita de lindos retalhos coloridos.
A minha avó da Ajuda.


Baptista-Bastos

domingo, junho 18, 2006

a casa sem avó: abrem-se os diques da tristeza adiada

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Ulysses deriding Polyphemus - Homer's Odyssey 1829



Ina-Lou, Tata-Hateke Ba Dok A viagem dos sons, Timor
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Lembro-me agora de todos os teus gestos, o olhar sobre os muitos netos espalhados pela casa, comendo pão com doce de tomate, explorando os mosaicos da varanda, debruçados da janela para a rua com poucos carros. Éramos todos tão pequenos e tu tão lúcida, a avó em cujo colo cabíamos todos à vez, a avó fustigada pela vida mas sempre generosa, de braços abertos, infinitamente terna. Havia um cheiro naquela casa que não encontrei em mais lado nenhum: um cheiro de quartos na penumbra e mobiliário escuro, de décadas atravessadas com esforço e entrega absoluta aos outros. Lembro-me agora das coisas mais insignificantes: um sofá cor-de-laranja que refulgia sob o sol da tarde, o quadro que representava um barco perdido na tormenta em alto mar, um banco de madeira na cozinha, conversas de adultos que eu não percebia. E a bondade da minha avó confundido-se com a casa, emanando das paredes como matéria luminosa, beijos e abraços e afagos, enquanto o Alentejo entrava pelas janelas, já tão perto de Lisboa.
Agora essa casa há muito desabitada ficou ainda mais distante, ilha que só a memória resgata. Morreu a última avó, a avó que a doença foi tornando ausente, numa espécie de morte antes da morte, num afastamento progressivo, lento e cruel. Algures um fio partiu-se, fechando a história de uma geração, enquanto se abrem os diques da tristeza adiada. Lembro-me agora de todos os teus gestos, avó. Vejo-te atravessando a escuridão da infância, belíssima. E apaziguas-me, novamente, nestas horas de despedida e melancolia.


José Mário Silva

(d)a humanidade sem agá ou uma teoria para os macacos de imitação

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Poul Hans Lange

Este post andou a moer-me a cabeça dias e dias, desde que li uma esclarecedora entrevista desta autora no D.N Artes. Para não guardar só para mim a "iluminação", deixo-vos, ipsis verbis, um excerto do seu conteúdo. Neste pequeno excerto ficámos a saber:
1) que ninguém definiu o light (talvez seja por não valer a pena, mas atrevo-me a sugerir que será uma espécie de estilo em que o autor tenta desesperadamente imitar os escritores, falhando redondamente quer nas palavras quer na sua intenção, isto para não falar da técnica narrativa);
2) que a autora escreve pop. (note-se que é pop sem itálico);
3) que foi a autora, literalmente, a salvar o mercado livreiro da morte certa "agonizante" (obrigada, Margarida, e eu sem saber nada disto!);
4) o livro passou a ser um bem quase de primeira necessidade (também não sabia -as coisas que eu não sei- mas imagino que a frase significa que os leitores de M.R. P. compram os seus livros juntamente com o leite, os ovos, o arroz e os iogurtes. O que fazem depois com eles, não fiquei a saber);
5) que toda a gente começou a escrever a seguir à autora, o que lhe estragou o "negócio" de primeira necessidade. Esta musa inspiradora deu lugar ao aparecimento de margaridos e margaridinhas, verdadeiros "macacos de imitação" sem rei nem roque;
6) que o "que vai ficar" é completamente diferente. (Estou de acordo. Inteiramente, ainda esta semana passei os olhos pelo Machado de Assis e percebi que tinha vindo para ficar, assim como o Shakespeare ou o Camões, que já cá andam há quase 500 anos, duraram mais do que os Descobrimentos);
7) que " pessoas acham que escrever é fácil, mas há jeito, talento e génio" (a regra, em geral é impiedosa: o jeito -para o negócio entenda-se- tem prazo de validade e liga-se intimamente à carinha laroca das "autoras") . O talento e o génio são perfeitos sacrilégios que só alguns "malditos" trazem com eles, como uma scarlett letter, porque são mesmo diferentes dos humanos que se escrevem com agá.
Depois da música, leia-se A autora vista pela sua própria lente


Jorge Rocha canta serás a nº 1, Eu só preciso dum minuto
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"Escrevo como posso e não como quero"
O light nunca foi bem definido por ninguém, além de que conside­ro que escrevo pop.
Quando apare­ci o mercado livreiro era o oposto do actual, emperrado e agonizante, no entretanto o livro mudou de estatu­to na vida das pessoas, passou a ser um bem quase de primeira necessi­dade.
O problema é que a seguir a mim todos começaram a escrever ­há 15 anos as mulheres queriam ser decoradoras, e há 30 hospedeiras ­e isso subverteu o mercado.
Assisti­mos a esse fenómeno de multiplica­ção de margaridos e margaridinhas, mas o que vai ficar é completamen­te diferente. Foi importante para os leitores ter acesso a coisas diferen­tes, mas perverso para o mercado li­terário, que passou de um extremo – só o que é hermético era bom - pa­ra um tratamento excessivamente comercial do livro.
As pessoas acham que escrever livros é uma coisa muito fácil, mas há jeito, ta­lento e génio.
Margarida Rebelo Pinto

quarta-feira, junho 14, 2006

Eugénio de Andrade, sonharmos a nossa própria (des)umanidade



Maurizio Pollini executa ao piano Robert Schumann
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Guardei para este post a homenagem a Eugénio de Andrade em Milão de que falei vagamente aqui, onde se ouviram, a par de algumas das vozes mais autorizadas na matéria, teses jovens e inovadoras sobre a obra do poeta.
A maior parte das vezes, ao fim de um calvário de trabalhos forçados que é a preparação de um Congresso, os lucros são magros e fica-se pelo blá, blá, que nada recria e muito menos transforma.
Não foi assim em Milão: as novas vozes foram escutadas com a autoridade que realmente detêm: está nelas o maior investimento, na investigação ou onde quer que seja. Foi com essa ciência que se concertaram afinidades em diferentes línguas e abordagens interdisciplinares, as mais importantes para manter vivo o sangue que corre nas veias dos criadores.
Eugénio de Andrade teria certamente amado ser visto, lido e dito daquela maneira, tão próxima do seu reduto: homens e mulheres a tentar casar-se com a respiração do poeta. Livres do seu ombro tutelar, soltaram as amarras e falaram de um grande poeta, revisto à luz do dia, em pleno sol, com a liberdade que a morte sempre traz.
Deixo-vos aqui algumas frases, escolhidas pelos seus autores, que pretendem ilustrar este postal escrito em Milão, para eugénio, com carimbo postal intercidades.


Nei versi degli altri

Contro la sacralità intangibile della parola montaliana, fuori della quale non c’è nulla e di nulla c’è bisogno, la traduzione di Eugénio de Andrade realizza quell’indispensabile atto di profanazione, che è l’unico modo per vincere l’impossibilità della traduzione poetica. (…) Come ricorda Giorgio Agamben nel suo Elogio della profanazione, ogni profanazione restituisce al libero uso e al commercio degli uomini ciò che era consacrato solo agli dei e, cosa ha fatto Eugénio de Andrade se non “tomar posesión de la poesía de Safo” (ma potremmo dire anche di quella di Montale, García Lorca, Yannis Ritsos, Enzensberger, etc.) “y, de paso, legarla a la poesía en lengua portuguesa? Così facendo, ha certamente commesso un gestio empio e sacrilego, ma i traduttori a qualcosa dovranno pure la loro pessima fama.
Giorgio de Marchis

Un ponte fra Oriente e Occidente
O Oriente sempre me fascinou. O que lhe (refere-se aos chineses) sai das mãos trabalhado em abundâcia de espírito - cerâmica, palha, bambu, comida, caligrafia, pintura, papel, poesia, tecido, pedra, música - tudo revela um saber delicado, subtil, superior.

Michela Graziani

Lume e gatos
A figura do gato tem servido para construir uma reflexão metapoética sobre questões de identidade. O olhar dos gatos, e a reflexão do olhar do sujeito poético no lume dos olhos dos gatos, é uma imagem complexa do intercâmbio entre um Eu e um Outro, de Baudelaire a Eugénio de Andrade, que nos alerta, num seu texto autobiográfico: “Ao fundo de cada uma destas linhas espreita um gato”.


Paulo Medeiros

La poesia nella voce del poeta
Em cada verso de Eugénio transpira o valor e o preço que o autor pagou em nome da poesia. Da sua poesia. E talvez aqui se encontre a questão fundamental sobre este clássico na modernidade europeia: a literatura vale uma vida? E a vida vale a literatura? Serão perguntas de interminável resposta. Mas em Eugénio, ambas se reunem, poesia e vida, numa celebração adâmica e vital, prolongando-se para lá do tempo. Se a poesia se afigura como um sonho feito na presença da razão, Eugénio de Andrade soube legar-nos esta capacidade única de sonharmos a nossa própria humanidade.

Maria Bochichio

Il giorno in cui Eugénio de Andrade connobe Cesare Pavese

O meu objectivo ao dar exemplos de poemas pavesianos imaginariamente inspirados em versos de Eugénio de Andrade foi o de "trocar a rosa", ou seja fazer um percurso de leitura ao contrário: a exemplo do Pierre Menarde Borges, tentei encontrar na poesia de Pavese que obviamente não conheceu a de Eugenio de Andrade, influências deste. Tentei assim estabelecer alguns pontos de contacto entre a poesia destes dois grandes vultos da poesia europeia para mais uma vez comprovar o que já se sabe:que a poesia é universal, e subsistindo no tempo, permite todos os percursos possíveis, cabendo ao leitor estabelecer afinidades electivas entre os poetas de que gosta mais.

António Fournier