quinta-feira, março 08, 2007

mulheres de todos-os-dias

Di Cavalcanti, mulheres protestando



Às mulheres "pequenas" de todos os dias, que ajudam tanta gente a ser tão grande



Elas às vezes derrapam nas tarefas úteis e inúteis que acumulam, e começam a ir ao fundo, primeiro devagar, depois a pique, como se nada lhes importasse já. De repente, porém, erguem a cabeça como feras acossadas e preparam-se para sair de mais um cerco dos muitos que a vida lhes urdiu. Eles lembram-se de tudo e de todos, embora muitas vezes finjam que não se importam, para fugir da dor alheia que não podem atenuar.

Elas movem-se, no metro, nos autocarros que percorrem de lés-a-lés, como a Luísa que -ainda- sobe a calçada. Elas passam pelo supermercado enquanto esperam os filhos à saída da Escola e fazem de mães enquanto cozinham, enquanto dormem, enquanto se entregam aos homens que amam e que seus filhos serão também um dia, quando um ombro for a única coisa que os sustenta.

Elas são generosas e solidárias, mesmo que urdam traições e teias de veneno. Mas bastará que uma qualquer força as una, e aí estão elas, ressuscitadas, na sua esplêndida força de abraçar fraternamente, mesmo que seja por um segundo e não mais. Às vezes recomeçam as guerras e a dureza apodera-se delas, implacáveis, sujas, capazes de esperar anos a fio os seus inimigos.
Mas há sempre uma aura de grandiosidade neste bem e neste mal, uma coragem, um devastar de território que lhes é inerente. A conquista é delas, sempre, por mais ilusões que se alimentem.

Às vezes falam com todos, como se fossem dali desde sempre, com uma naturalidade que só uma criança conhece. Às vezes sustentam-se num silêncio, como rochas que são.
Todas da mesma família, da mesma fibra, da mesma fé de saber esperar e consolar.

Quem sabe quanto dariam para serem consoladas, para terem a cabeça só para si, mas já perderam o hábito, neste treino contínuo de tomar conta de todos, como se o sol daquelas vidas não se levantasse sem a sua ajuda.

Amam como ninguém, mesmo quando o amor está gasto. São corredoras de fundo que sabem as metas, e se renovam com atalhos que só elas sabem. Por isso emergem sempre, do fundo das águas que parecem devorá-las, para sobreviver à anca partida, ao reumático, às esperas nos hospitais, nas bichas dos autocarros, com os infalíveis sacos de plásticos que lhes traça um perfil português.

Esperaram anos que um dia fosse diferente. Agora sabem que não será e fintam o destino, vivendo cada dia, como certo num destino que é delas. Dentro de si, porém, sabem quanto valem, mesmo sem quotas dos partidos, mesmo de bilha de gás à cabeça, mesmo fazendo e desfazendo filhos de que alguns falam porque não sabem nada da quela vida delas, cheia de afecto, de revolta e de enganos sucessivos, que são a sua alegria e o seu pão.
Por isso lavam as escadas para arredondar os ordenados magros “de mulher”, partem e repartem o pão ainda ninguém sabe como, para dar à família, ao homem, aos filhos.


Trazem-nos para sempre debaixo das saias largas que as trisavós usaram e escondem-lhes a cabeça quando estão em perigo, dando-lhes de comer como meninos que são, companheiros da vida a quem querem poupar os perigos demasiados que os rodeiam, os desempregos no horizonte, os empregos a prazo, o olhar infeliz que as deixam esvaziadas e sem norte. Mas correm sempre para a frente, com aqueles filhos todos, uns delas outros adoptados, com que adormecem à cabeceira, porque fazem parte do seu sono frágil de pássaro sobressaltado e eterno.

armandina maia