sábado, novembro 12, 2005

há muitos anos que o meu coração abre e fecha

há muitos anos que
o meu coração
abre e fecha ­
acho que não exactamente
segundo as normas em vigor
mas francamente
para quem tem uma ferida aberta
ou duas
nem sei se três ou quatro...

mas
não afiem a faca cortadores,
não contem comigo;
isto é de nascença:

como as sístoles e diástoles dos pés
dos hexâmetros trocaicos

(sem ofensa)

alberto pimenta, as moscas de pégaso (& etc)

terça-feira, novembro 08, 2005

luís carlos patraquim, "aqui me esqueço do que me querem"

Eis as casas. Grutas de sal a céu onde me descubro. E sou nome ou reboco do dia que se extenua e sonha, vento mari­timo que me leva às praias fulgurantes que faltam nos livros. Aqui me deito, peixe, memória, homem, contigo e a chuva e o iodo e o som das casuarinas circulares, teu verde escuro açoitado de desejo. O bosque.
Aqui me ergo, pendurado em panos às janelas, imagem de despudor sem mim. Porque aqui me esqueço do que me querem. Da história que me fizeram e fui. Olhem estas paredes que respiram! Arfam? Olhem onde não me posso esconder, no laborioso percurso das tardes jogando-me, brincando, obsessivo geründio doutra estória às avessas da história, onde nao me vissem mais, quando me distraio, viandante de mim nos alvéolos iluminados do tempo.
Luís Carlos Patraquim, "Os Barcos Elementares", Vinte e tal Novas formulações e uma Elegia Carnívora

corsino fortes, o olho da ilha


fotografia de marzio marzot
Proposição
Ano a ano
crânio a crânio
Rostos contornam
o olho da ilha
Com poços de pedra
abertos
no olho da cabra

E membros de terra
Explodem
Na boca das ruas
Estátua de pão s6
Estátuas de pão sol

Ano a ano
crânio a crânio
Tambores rompem
a promessa da terra Com pedras
Devolvendo às bocas
As suas veias
De muitos remos

Corsino Fortes, pão & fonema

segunda-feira, novembro 07, 2005

ana mafalda leite, "as asas sem rumo"


fotografia de patrícia maia

pergunto-me
que passaporte é necessário para chegar ao coração
que visto ou certificado que senha ou passe
aque abracadabra
ou que carimbo mágico
acendem os círculos
acham a sua terra

terra prometida
atlântida e sonho

eu que tenho asas e vou sem rumo

Ana Mafalda Leite, Passaporte do Coração

terça-feira, novembro 01, 2005

lá no fundo damo-nos todos bem...

Foi assim que o David pôs uma pedra em cima do assunto. O David é aquele miúdo com olhar de gente crescida, com ar de órfão de guerra, a caminhar sempre lento como se nunca tivesse pressa. Nem entusiasmo. Mas insisto no olhar apagado como uma luz escura. Não há nele vestígios de revolta. Talvez algum -ou muito - medo, que já são águas passadas. O David e os seus olhos caminham como se a estrada tivesse chegado ao fim. (Que culpa nos caberá de tudo o que ele calou?).
De vez em quando dá mostras de estar vivo, ao desenhar os ténis em fim com que enche as folhas de linhas do caderno ou os símbolos do Wrestling, que o fazem sorrir como se o riso não fosse dele. O sorriso do David é uma verdadeira bofetada nos dias mundiais da criança. Porque o David pertence àquel grupo que parece já ter visto tudo. E não gosta do que vê nem do que sabe. No entanto, como qualquer homem de honra, jamais trairá o segredo da família. Aquela é a sua família e a sua gente.
Com mais ou menos dor, como dizia ele na composição em que contava a história dos arrufos familiares, lá no fundo damo-nos todos bem....