terça-feira, junho 27, 2006

Da pintura ao futebol (passando pela net, pela street art e por tudo o que ainda não descobrimos)

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Poul Hans Lange



Villa Lobos
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Em tempo de inaugurações por toda a parte (da capital, entenda-se, que do resto do país só se sabe o que sobra em espaço noticioso), e da quase mitológica ascenção do futebol à condição de CAUSA do país, não seria mal pensarmos nos lugares de cultura, os sagrados, os de sempre, os de muito poucos e as suas novas formas, diante de nós, inseguras e perenes, com sinais de evidente vitalidade, de não recear o futuro, de não esmolar o subsídio. Gente com um arsenal de talento no fundo da gaveta, no sótão da casa, que o marasmo de uma elite deixa morrer todos os dias porque só se olha a si mesma. Gente incomum, que (se) diz e (se) faz. Acomodar-se-ão um dia? não sei, mas agrada-me que existam, fazem-me sentir mais pertencente ao futuro em que me sonho para não sucumbir.

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A Cultura é o diálogo da espécie humana com ela mesma e com o que a transcende. É a voz da humanidade, ao longo dos tempos, na sua máxima integridade, no confronto com o limite da sua divindade. A Cultura é o reflexo do espírito humano, no sentido da sua condição, naquilo a partir do qual nós somos o que somos até onde os seus contornos nos instalam. São as nossas constatações das nossas limitações e os nossos gritos de revolta contra essas limitações. Por isso a Cultura é tão importante, porque eleva o Homem ao máximo de si. E também por isso a Cultura nunca morrerá, enquanto houver homens haverá Cultura, porque ela é os homens, é, pelo menos, o que resta deles no fim, o que lhes sobra, o seu saldo.

João Moita (autor do blog "Escrito a sangue" e leitor deste blog)


A palavra “cultura” continua a representar um mundo do qual os cidadãos se sentem excluídos.
O desafio que se coloca neste momento é fazer da cultura um “campo aberto” a manifestações de todas as vertentes, de diferentes faixas etárias de diferentes classes e etnias.
“A cultura é de todos” terá que deixar o lugar do slogan para se tornar uma prática real e eficaz, capaz de incentivar e deixar que se gerem novos talentos, novas dinâmicas, novas competências.
numa palavra Cultura representa mais do que tudo, o fim do preconceito.

Armandina Maia


O que é a cultura? Eu respondo olhando esta escultura que está num dos lados da Catedral de S. Marcos. Nada do que ela representa existe, a não ser o doge ajoelhado. Existe? Não existe nenhum doge que se tenha ajoelhado diante de um leão. Não há na terra nenhum leão alado, com face humana, segurando um livro. O leão olha para a cidade, para o mar, o doge para o leão. Tudo é símbolo, sobre símbolo, sobre símbolo. O leão representa, como se sabe, uma abstracção: a república. A primeira palavra do livro é outra abstracção, mais desejada do que tudo, “Pax”. O doge ajoelha-se perante abstracções: o poder está no leão e não no doge, o leão fala-lhe de paz e mostra o livro aberto ao povo, que não se vê, mas vê. É isto a cultura: uma invenção da imaginação humana, contra natura, contra o terror, contra o caos, por uma ordem superior feita de um teatro de convenções simbólicas que nos protegem, e que são a civilização. Tudo muito frágil, tudo construído, tudo inventado, tudo quase no limiar de nada. O doge pode pôr-se a pé e matar o leão, ou o leão comer o doge, o livro cair para a populaça o destruir, a primeira palavra pode não ser “Pax”, mas guerra. A cultura é uma frágil defesa, mas existe. Está ali, em pedra, símbolo de obediência do homem a convenções abstractas que ele criou e que só existem quando há vontade que existam. Nada depende mais da vontade do que a cultura e a civilização. Somos nós que as fazemos, somos nós que as desfazemos.

Pacheco Pereira in Abrupto

quarta-feira, junho 21, 2006

Quando a minha avó me visitava fazia-se uma pausa no tempo

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La casita blanca cantada por Juan Manuel Serrat
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A minha avó nunca teve tempo para se sentar e olhar o rio. O tempo passara por ela muito depressa, tornara-a mais baixa, cheia de rugas, osso, mágoas e apreensão.
A minha mãe morrera, eu vivia com o meu pai, na Bica, e a minha avó andava sempre atrás de mim, perguntando-me, desassossegada, se eu comia bem: fruta, leite, bifes.
Quando desci a colina da Ajuda e me instalei naquele bairro, a meio da cidade, após uma soturna viagem de carro eléctrico, o meu pai prendeu a minha mão na sua e foi dizendo: «Gosto muito de ti. E, agora, tenho de gostar de ti duas vezes: por mim e pela tua mãe». Começámos a viver numa parte de casa. O meu pai trabalhava de noite, dormia de dia, e eu dependurava-me nos elevadores, a ocultas do revisor da Carris. Se me visse naquele propósito, dava-me com o alicate nos dedos.
Os elevadores iam do Calhariz a São Paulo. Belos nomes.
Quando a minha avó me visitava fazia-se uma pausa no tempo. Ela sentava-se no degrau da soleira da porta e contava-me as ocorrências no bairro onde nascêramos. Olhava-a com desvelo e à beleza do seu rosto majestoso, comparável ao busto de uma estátua.
O virar dos anos fez-me pensar como é que ela mantivera o porte e a teimosia da esperança, numa casa e numa família onde se chorava demasiado.
Ao despedir-se enfiou a mão na bolsa colocada por detrás do avental e deu-me umas moedas.«Come bolas de Berlim, dão grande sustentação ao corpo». A bolsa tinha a forma de um oito, com a base mais larga, e três compartimentos: para as notas, para as moedas de prata e para as de cobre. A minha avó era dona de um bom par de mãos arcaicas. Fizera renda, trabalhara numa fábrica de merino e, agora, vendia peixe. A bolsa era um artefacto de pequenos quadrados de flanelas coloridas e sobrepostas, e exalava um discreto cheiro a peixe.
A minha avó gostava de passar a mão direita, como uma carícia, na zona do avental sob a qual estava a bolsa. Dizia que o dinheiro jamais se acabaria, porque se sentia reconfortado e grato com os afagos.
A verdade é que a bolsa nunca esteve vazia para quem, na família, de auxílio precisasse.
Era uma avó que nunca procurara, na leitura, desvendar os mistérios do mundo. Aliás, lia com extrema dificuldade. Para ela, o maior de todos os poetas era João Linhares Barbosa, parente afastado, letrista de fados que falavam de sardinheiras, de amores vadios, de mulheres fatais e de ruinosas amizades.
A glória estremecida de Linhares Barbosa devia-se à circunstância de haver escrito alguns fados para Amália. Quando se cruzava com a minha avó, tirava o chapéu, num gesto ameno e circunspecto. «Um homem de grande respeito. Até vai a todos os enterros».
O Beco do Xadrez, junto ao Largo da Paz, já não existe. Um pedaço de terra entre lágrimas, e só se chegava lá com conhecimento de causa. A minha avó viveu ali uma abundância de anos. Uma casa térrea, duas divisões, uma talha com água sobre a qual permanecia um pano enorme, molhado, para manter a frescura. Acendia o candeeiro a petróleo, sentava-se à beira da cama e meditava nessa dor humilde e secreta que apenas o silêncio entende.
Nunca descortinei porque motivo uma mulher tão atropelada pela vida, tão marcada de padecimento, era conhecida pela Maria Palhaça. Entre nós, a Avó Palhaça.
A Avó Palhaça que sobrevivera a mortes, a desempregos, a afrontas infinitas sem o mais breve queixume ou a mais ligeira imprecação. A Avó Palhaça, canastra à cabeça, a subir o Aterro, pequena de tamanho, grandiosa na sua luminosa humanidade.
A Avó Palhaça, que tinha uma bolsa inesgotável, feita de lindos retalhos coloridos.
A minha avó da Ajuda.


Baptista-Bastos

domingo, junho 18, 2006

a casa sem avó: abrem-se os diques da tristeza adiada

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Ulysses deriding Polyphemus - Homer's Odyssey 1829



Ina-Lou, Tata-Hateke Ba Dok A viagem dos sons, Timor
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Lembro-me agora de todos os teus gestos, o olhar sobre os muitos netos espalhados pela casa, comendo pão com doce de tomate, explorando os mosaicos da varanda, debruçados da janela para a rua com poucos carros. Éramos todos tão pequenos e tu tão lúcida, a avó em cujo colo cabíamos todos à vez, a avó fustigada pela vida mas sempre generosa, de braços abertos, infinitamente terna. Havia um cheiro naquela casa que não encontrei em mais lado nenhum: um cheiro de quartos na penumbra e mobiliário escuro, de décadas atravessadas com esforço e entrega absoluta aos outros. Lembro-me agora das coisas mais insignificantes: um sofá cor-de-laranja que refulgia sob o sol da tarde, o quadro que representava um barco perdido na tormenta em alto mar, um banco de madeira na cozinha, conversas de adultos que eu não percebia. E a bondade da minha avó confundido-se com a casa, emanando das paredes como matéria luminosa, beijos e abraços e afagos, enquanto o Alentejo entrava pelas janelas, já tão perto de Lisboa.
Agora essa casa há muito desabitada ficou ainda mais distante, ilha que só a memória resgata. Morreu a última avó, a avó que a doença foi tornando ausente, numa espécie de morte antes da morte, num afastamento progressivo, lento e cruel. Algures um fio partiu-se, fechando a história de uma geração, enquanto se abrem os diques da tristeza adiada. Lembro-me agora de todos os teus gestos, avó. Vejo-te atravessando a escuridão da infância, belíssima. E apaziguas-me, novamente, nestas horas de despedida e melancolia.


José Mário Silva

(d)a humanidade sem agá ou uma teoria para os macacos de imitação

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Poul Hans Lange

Este post andou a moer-me a cabeça dias e dias, desde que li uma esclarecedora entrevista desta autora no D.N Artes. Para não guardar só para mim a "iluminação", deixo-vos, ipsis verbis, um excerto do seu conteúdo. Neste pequeno excerto ficámos a saber:
1) que ninguém definiu o light (talvez seja por não valer a pena, mas atrevo-me a sugerir que será uma espécie de estilo em que o autor tenta desesperadamente imitar os escritores, falhando redondamente quer nas palavras quer na sua intenção, isto para não falar da técnica narrativa);
2) que a autora escreve pop. (note-se que é pop sem itálico);
3) que foi a autora, literalmente, a salvar o mercado livreiro da morte certa "agonizante" (obrigada, Margarida, e eu sem saber nada disto!);
4) o livro passou a ser um bem quase de primeira necessidade (também não sabia -as coisas que eu não sei- mas imagino que a frase significa que os leitores de M.R. P. compram os seus livros juntamente com o leite, os ovos, o arroz e os iogurtes. O que fazem depois com eles, não fiquei a saber);
5) que toda a gente começou a escrever a seguir à autora, o que lhe estragou o "negócio" de primeira necessidade. Esta musa inspiradora deu lugar ao aparecimento de margaridos e margaridinhas, verdadeiros "macacos de imitação" sem rei nem roque;
6) que o "que vai ficar" é completamente diferente. (Estou de acordo. Inteiramente, ainda esta semana passei os olhos pelo Machado de Assis e percebi que tinha vindo para ficar, assim como o Shakespeare ou o Camões, que já cá andam há quase 500 anos, duraram mais do que os Descobrimentos);
7) que " pessoas acham que escrever é fácil, mas há jeito, talento e génio" (a regra, em geral é impiedosa: o jeito -para o negócio entenda-se- tem prazo de validade e liga-se intimamente à carinha laroca das "autoras") . O talento e o génio são perfeitos sacrilégios que só alguns "malditos" trazem com eles, como uma scarlett letter, porque são mesmo diferentes dos humanos que se escrevem com agá.
Depois da música, leia-se A autora vista pela sua própria lente


Jorge Rocha canta serás a nº 1, Eu só preciso dum minuto
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"Escrevo como posso e não como quero"
O light nunca foi bem definido por ninguém, além de que conside­ro que escrevo pop.
Quando apare­ci o mercado livreiro era o oposto do actual, emperrado e agonizante, no entretanto o livro mudou de estatu­to na vida das pessoas, passou a ser um bem quase de primeira necessi­dade.
O problema é que a seguir a mim todos começaram a escrever ­há 15 anos as mulheres queriam ser decoradoras, e há 30 hospedeiras ­e isso subverteu o mercado.
Assisti­mos a esse fenómeno de multiplica­ção de margaridos e margaridinhas, mas o que vai ficar é completamen­te diferente. Foi importante para os leitores ter acesso a coisas diferen­tes, mas perverso para o mercado li­terário, que passou de um extremo – só o que é hermético era bom - pa­ra um tratamento excessivamente comercial do livro.
As pessoas acham que escrever livros é uma coisa muito fácil, mas há jeito, ta­lento e génio.
Margarida Rebelo Pinto

quarta-feira, junho 14, 2006

Eugénio de Andrade, sonharmos a nossa própria (des)umanidade



Maurizio Pollini executa ao piano Robert Schumann
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Guardei para este post a homenagem a Eugénio de Andrade em Milão de que falei vagamente aqui, onde se ouviram, a par de algumas das vozes mais autorizadas na matéria, teses jovens e inovadoras sobre a obra do poeta.
A maior parte das vezes, ao fim de um calvário de trabalhos forçados que é a preparação de um Congresso, os lucros são magros e fica-se pelo blá, blá, que nada recria e muito menos transforma.
Não foi assim em Milão: as novas vozes foram escutadas com a autoridade que realmente detêm: está nelas o maior investimento, na investigação ou onde quer que seja. Foi com essa ciência que se concertaram afinidades em diferentes línguas e abordagens interdisciplinares, as mais importantes para manter vivo o sangue que corre nas veias dos criadores.
Eugénio de Andrade teria certamente amado ser visto, lido e dito daquela maneira, tão próxima do seu reduto: homens e mulheres a tentar casar-se com a respiração do poeta. Livres do seu ombro tutelar, soltaram as amarras e falaram de um grande poeta, revisto à luz do dia, em pleno sol, com a liberdade que a morte sempre traz.
Deixo-vos aqui algumas frases, escolhidas pelos seus autores, que pretendem ilustrar este postal escrito em Milão, para eugénio, com carimbo postal intercidades.


Nei versi degli altri

Contro la sacralità intangibile della parola montaliana, fuori della quale non c’è nulla e di nulla c’è bisogno, la traduzione di Eugénio de Andrade realizza quell’indispensabile atto di profanazione, che è l’unico modo per vincere l’impossibilità della traduzione poetica. (…) Come ricorda Giorgio Agamben nel suo Elogio della profanazione, ogni profanazione restituisce al libero uso e al commercio degli uomini ciò che era consacrato solo agli dei e, cosa ha fatto Eugénio de Andrade se non “tomar posesión de la poesía de Safo” (ma potremmo dire anche di quella di Montale, García Lorca, Yannis Ritsos, Enzensberger, etc.) “y, de paso, legarla a la poesía en lengua portuguesa? Così facendo, ha certamente commesso un gestio empio e sacrilego, ma i traduttori a qualcosa dovranno pure la loro pessima fama.
Giorgio de Marchis

Un ponte fra Oriente e Occidente
O Oriente sempre me fascinou. O que lhe (refere-se aos chineses) sai das mãos trabalhado em abundâcia de espírito - cerâmica, palha, bambu, comida, caligrafia, pintura, papel, poesia, tecido, pedra, música - tudo revela um saber delicado, subtil, superior.

Michela Graziani

Lume e gatos
A figura do gato tem servido para construir uma reflexão metapoética sobre questões de identidade. O olhar dos gatos, e a reflexão do olhar do sujeito poético no lume dos olhos dos gatos, é uma imagem complexa do intercâmbio entre um Eu e um Outro, de Baudelaire a Eugénio de Andrade, que nos alerta, num seu texto autobiográfico: “Ao fundo de cada uma destas linhas espreita um gato”.


Paulo Medeiros

La poesia nella voce del poeta
Em cada verso de Eugénio transpira o valor e o preço que o autor pagou em nome da poesia. Da sua poesia. E talvez aqui se encontre a questão fundamental sobre este clássico na modernidade europeia: a literatura vale uma vida? E a vida vale a literatura? Serão perguntas de interminável resposta. Mas em Eugénio, ambas se reunem, poesia e vida, numa celebração adâmica e vital, prolongando-se para lá do tempo. Se a poesia se afigura como um sonho feito na presença da razão, Eugénio de Andrade soube legar-nos esta capacidade única de sonharmos a nossa própria humanidade.

Maria Bochichio

Il giorno in cui Eugénio de Andrade connobe Cesare Pavese

O meu objectivo ao dar exemplos de poemas pavesianos imaginariamente inspirados em versos de Eugénio de Andrade foi o de "trocar a rosa", ou seja fazer um percurso de leitura ao contrário: a exemplo do Pierre Menarde Borges, tentei encontrar na poesia de Pavese que obviamente não conheceu a de Eugenio de Andrade, influências deste. Tentei assim estabelecer alguns pontos de contacto entre a poesia destes dois grandes vultos da poesia europeia para mais uma vez comprovar o que já se sabe:que a poesia é universal, e subsistindo no tempo, permite todos os percursos possíveis, cabendo ao leitor estabelecer afinidades electivas entre os poetas de que gosta mais.

António Fournier


sábado, junho 10, 2006

Timor, uma independência (?) a lembrar neste nosso 10 de Junho, em que "deus é o piloto do infinito"




Massi Olarinda, Tata-Hateke Ba Dok A viagem dos sons, Timor
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Em mim, a guerra
Divide os continentes.
O laço oceânico, que embora nos unia,
Cortaram-no.
Restam duas flâmulas, que a pouco
Desfalecem, sumidas
E pouco flutuam
Nos abismos nocturnos.
É tempo de ir em busca de outros mundos,
Movido pelo império que em mim se usa;
Capitão da minha escuna,
As vozes de coragem comandam
Em todos que em mim se escutam e confiam.


Decidimos os destinos
Ausentes de emoção;
O sangue derramado que nos guia,
O nosso sangue!
É ele que em nós resgata a divindade.


Olhai, vós, desgraçados,
Mercenários do presente!
É ainda a dor esmagada que vos prende
Que em nós torna daudável a loucura.


Tão certos rasgamos a onda que nos leva,
Nós, os deserdados das histórias de crianças,
Erguidos à Vida!
Tão sérios os rostos nas vésperas do sonho...
Tão sérios os rostos.
Só Deus nos faria regressar... Ah!
Mas Deus é o piloto do infinito.


Vinde, pois, irmãos de um outro sangue
—Amigos, chegados sem prévio aviso ou súplica
—Vinde!
É tempo de sermos nós os mandatários,
Colonos da Terra infecundada.


Ruy Cinatti


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quinta-feira, junho 08, 2006

Paulo Sarmento: Sede sedentos. Fazei-vos mendigos de tudo.

Picasso, Pobres al borde del mar (1903)




Victor Gama, Pangeia
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AS INSCRIÇÕES NO CAJADO

Não compreis pão para o caminho (pelos deuses da vossa vida, não o façais!), que será a fome a conduzir-vos.

Caminhai descalços, como os cegos: vede pelos olhos dos vagabundos.

Não profirais a palavra, qualquer palavra;silenciai o pensamento (pelos deuses da vossa vida, silenciai o pensamento!).

Não sejam ultrapassados os vagabundos, para que não os
percais.

Deixai crescer viçosa a morte, como seara ressequida (pelos deuses da vossa vida), deixai crescer viçosa a morte. Ampliai-vos em desolação.
Abri-vos ao vento suão, com narinas de dromedário.


Sede desertos. Fazei-vos mendigos de tudo.


Paulo Sarmento
, As ruas de saibro estão vazias
(Leitor deste blog e escritor)



quinta-feira, junho 01, 2006

Educação em Portugal: os cavalos também se abatem

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Max Pechstein, O mercado de cavalos em Moritzburg


José Afonso, Epígrafe para a arte de furtar
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Os cavalos também se abatem


1. Há tempos chamaram-nos “os suspeitos do costume”. E assim temos sido tratados. Com pouco respeito, com muita arrogância, com mensagens subliminares de absentismo e pouco trabalho.
Mas nós, os profissionais da Educação, somos estranhos “suspeitos”: queremos condições para actualizar os nossos conhecimentos, discutir estratégias, reformular materiais e abordagens, capazes de enfrentar, sem baixar a fasquia da exigência, os novos públicos chegados à Escola. Todos somos precisos para tentar construir uma Escola de sucesso (convém não esquecer o papel dos sindicatos, apáticos, alheios e ausentes numa discussão sobre a dignificação da Carreira Docente que passa, inevitavelmente, pela avaliação dos mesmos, como pela criação de condições dignas para o exercício das suas funções).

2. Para os “inquilinos” do M. E. (utilizo a expresão de Fátima Bonifácio), este, como todos os que o antecederam, professores e alunos são meros números, que têm que obedecer às metas europeias, como bem têm demonstrado os discursos oficiais.
Para que servem a introdução do inglês, o reforço da matemática, o prolongamento da escolaridade obrigatória, as tecnologias? Para falarmos “europeu” e ficarmos bem no retrato de família.

3. Nestas medidas, mais uma vez, não se vislumbra uma política de ensino que fundamente a necessidade de elevar a fasquia da informação e do conhecimento. Por ignorância e leviandade, os vários Ministros da Educação não tiveram a coragem de gizar um plano para o Ensino no nosso país. Mas, claro que, cada equipa ministerial, tem uma ideia salvadora, a que nos há-de transformar em cidadãos diligentes e produtivos.

4. Assim fez o actual ministério: passou à acção, fez uma contas por alto e descobriu que punha as escolas a produzir que nem fábricas em tempo de revolução industrial. Os tais “supeitos” dos professores passaram de oito a oitenta (os exageros eram realmente muitos), com horário fixo, ainda que em condições de verdadeira insalubridade mental.

5. Há furos nos horários dos alunos? Falta alguém (ou melhor, alguém ousou faltar, apesar das ameaças?). Temos os professores. Falta pessoal nas escolas do 1ºciclo para cumprir as precipitações das promessas eleitorais? Temos os professores.
Então e o meu know-how? Então o que eu aprendi e investi nas minhas três dezenas de anos de trabalho, que podia ensinar agora aos outros? Então, e os meus colegas mais novos, também vão para a fogueira connosco, num desemprego que podia ser transformado em actividade lectiva e produtiva (saberá a governação que o subsídio de desemprego gera incapacidade e solidão, provavelmente o pior dos males sociais do nosso tempo?).

6. Hipotecar as sinergias de que tanto precisamos, acusando os professores de uma calamidade que é, realmente, um sério problema de todos os países, na cegueira do consumo e a iliteracia, corresponde a hipotecar o futuro.
Apesar da pompa e da circunstância, apesar do “terramoto” de ideias avulsas e condenadas à sua auto-extinção, o ensino continua de rastos e o rei vai realmente nu.

7. Neste cenário, qualquer palco semelhante ao de um manicómio se afigura possível: pais a avaliar quando têm crianças para educar, crianças no limiar da miséria empurradas para a Escola como se de uma casa de correcção se tratasse, professores a ensinar sem condições psicológicas nem mentais, por razões de sobrevivência (porque não?). E os maus e bons professores, os profissionais “de carteira”, de primeira água, os jovens professores, sem retaguarda nem direito a ela, apostados numa Escola em que todos são, cada vez mais, carne para canhão.

8. Boas práticas? Aguardemos o tempo em que as cadeiras mais uma vez irão rodar, e as cabeças rolar, para ver por onde andam, e têm andado, realmente, os destinos da Educação em Portugal: sem rumo e sem norte, como de resto, todo o país, que empobrece cada dia que passa e se cobre de vergonha perante tanta mentira junta.

9. O mito da ministra competente porque é "dura" agrada a muitos, que acham que têm que se "educar" profissionais, a classe que lhe segura os pilares da educação, tratando-os como lacaios, desde que pisou a soleira do Ministério que "dirige" . Um dia saberemos a extensão dos danos colaterais desta atitude que, continental por excelência, em que se acusa, rejeita e manda, revelando uma "capacidade" de diálogo que é realmente um exemplo de más práticas, semelhante àqueles professores para quem os alunos são todos burros e não aprendem.


Nota: Não me vou pronunciar sobre aquele simulacro de discussão sobre violência nas escolas, com crianças de cara tapada, uma aula de descontrole total a ser filmada com câmara oculta (???), enquanto as "outras" as normais, ficaram atrás das câmaras. Custou-me ver um ex-bom pivot prestar-se àquilo.
Ler outros que nem eu aqui, aqui, aqui, aqui ou aqui.



sejam bem vindos, mesmo que não venham por bem.


Armandina Maia