domingo, junho 18, 2006

a casa sem avó: abrem-se os diques da tristeza adiada

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Ulysses deriding Polyphemus - Homer's Odyssey 1829



Ina-Lou, Tata-Hateke Ba Dok A viagem dos sons, Timor
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Lembro-me agora de todos os teus gestos, o olhar sobre os muitos netos espalhados pela casa, comendo pão com doce de tomate, explorando os mosaicos da varanda, debruçados da janela para a rua com poucos carros. Éramos todos tão pequenos e tu tão lúcida, a avó em cujo colo cabíamos todos à vez, a avó fustigada pela vida mas sempre generosa, de braços abertos, infinitamente terna. Havia um cheiro naquela casa que não encontrei em mais lado nenhum: um cheiro de quartos na penumbra e mobiliário escuro, de décadas atravessadas com esforço e entrega absoluta aos outros. Lembro-me agora das coisas mais insignificantes: um sofá cor-de-laranja que refulgia sob o sol da tarde, o quadro que representava um barco perdido na tormenta em alto mar, um banco de madeira na cozinha, conversas de adultos que eu não percebia. E a bondade da minha avó confundido-se com a casa, emanando das paredes como matéria luminosa, beijos e abraços e afagos, enquanto o Alentejo entrava pelas janelas, já tão perto de Lisboa.
Agora essa casa há muito desabitada ficou ainda mais distante, ilha que só a memória resgata. Morreu a última avó, a avó que a doença foi tornando ausente, numa espécie de morte antes da morte, num afastamento progressivo, lento e cruel. Algures um fio partiu-se, fechando a história de uma geração, enquanto se abrem os diques da tristeza adiada. Lembro-me agora de todos os teus gestos, avó. Vejo-te atravessando a escuridão da infância, belíssima. E apaziguas-me, novamente, nestas horas de despedida e melancolia.


José Mário Silva

7 comentários:

bettips disse...

Agradeço, minha querida, as suas passagens. Claro que o "seu cartão de visita" e algumas mensagens que fui lendo, fizeram a preferência pelo seu sítio. Como digo ao princípio do meu "bloguito", não estou para ninguém de quem eu não goste. Esta é a minha demo-cracia: quero gostar. Ter trigo. Aprender. Saber de outros mundos. E como sabe (pelo que depreendo) há mundos que não interessam o tempo que perdemos com eles!. É poderoso ter o Delete à mão e o X debaixo do dedo, valha-nos isso! Deixo-lhe um abraço, porque este seu último post deixou-me muito comovida. Eu tive uma avó linda e pequenina, chamavam-lhe "andorinha". Ficaram-me umas saudades imensas e todos os dias, sim todos os dias, em gestos, expressões (a cozinhar, a lavar roupa à mão, a dar...) ela está presente. E sabe qual foi a herança que me deixou? Nada. Tudo. Os olhos azúis do meu filho!

João Moita disse...

Belo blog!

João Moita disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
tsiwari disse...

As nossas crianças não terão avós assim.

as avós delas trabalham fora de casa.

são como as mães delas, mas mais velhas.

as nossas avós eram muito diferentes das nossas mães.

texto lindo, armandina, lindo!

armandina maia disse...

Sei de um saber de experiência feito, bastante recente, aliás, que as avós são a forma mais saudável de colmatar as ausências dos pais que trabalham de sol a sol, às vezes só para comprar mais uma coisa inítil par uma casa onde há pão, mas pouco tempo para viver uns com os outros.
As avós como esta, são ainda uma âncora, um par de abraços que nos espera sempre, com festas na cabeça e um olhar que sabe a colo quente, em que nos aninhamos como um recém-nascido.

Praticamente não conheci nenhuma das minhas avós. Por isso me tenho dedicado adescobri-las. A literatura é um excelente lugar para minimizar os danos.

ps: o texto é magnífico, por isso o roubei à sua origem.

armandina maia

alecerosana disse...

Texto magnífico, sim!
É uma mágoa que tenho desde que me conheço, nunca ter podido saborear as carícias de uma avó. Os meus pais, por serem os filhos mais novos de grandes famílias, ficaram sem pais muito cedo. Em contrapartida, os meus filhos têm conseguido usufruir dessa convivência que considero tão importante.
Obrigada por me ter permitido ler o texto.
Um abraço,
Alece

cris disse...

Bem vivi muito tempo com minha avó, que foi mãe tambem , quando eu era pequena, naum era tão doce, gostaria, mais os poucos carinhos que recebia era de total valía, mas sem eu perceber me ensinou muita coisa que carrego comigo. foi com ela que descobri o mundo. e já depois de adulta pude compartilhar mais desse amor, que na minha infancia não tinha me dado conta de como era grande, a preocupaçao comigo mesmo já adulta a saudade de quando estava longe,o medo de não me ver mais,me assustaram. pois ate então ainda naum havia me sentido amada assim por ela,não sabia que era tão importamte assim pra ela, lembro como gostava do cheiro dela, ela era muito vaidosa,não era perua lonje disso, tava mais pra bonequinha.um jeito simples que me encantava. lembro do toque de suas mãos já envelhecidas pelo tempo. de como gostavamos de conversar so nos duas.Noa seus ultimos dias eu não estava perto ja fazia algum tempo. ela me chamou fui correndo,foram 2 dias de viagem, nunca esqueço da imagem dela, o desespero quando me viu, a angustia em seu olhar, aquilo acabou comigo. felismente naqueles dias ela não se foi Deus me deu mais um tempo com ela.que aproveitei ao maximo, tive que voltar e a deixei, na esperança de ve-la novamente, mais Deus não quis assim, tinha pedido tanto suplicado tanto por ela, tinha realmente esperança, era o que eu me permtia ter esperança e fé acima de tudo. Mas não posso mudar a vontade de Deus. ela se foi , eu naum estava lá, não pude ve-la , não pude me despedir, não pude tocar na sua pele li abraçar, e dizer obrigada por tudo vá em paz,naum pude,meu coração se despedaçou com essa impossibilide, a mulher que sempre esteve comigo na sua despedida eu não estava lá. isso me corroi por dentro toda vez que penso nisso.foi uma crueldade do destino ter me tirado esse momento. Mais talvez Deus tenha visto que eu não ia aguentar e tenha me poupado disso, muitas vezes prefiro pensar assim. minha vó ,nossa como tenho saudade.