sábado, outubro 21, 2006

o céu abre-se ao meio/ e cai-me no regaço

http://www.pbase.com/adalberto_tiburzi/image/50743683


Um lapso à escuta
1
Não há exaltação
este novelo de sombras
e nos ouvidos
a carne descansa o seu
abecedário.
Tornei-me este planeta por ofício.
Alguns colegas pedem: capelas,
luxos, alquimias.
E outros puxam, palavra
por palavra,
peixes de silêncio.
São atletas de Deus.
E eu confirmo.
também já conheci
os mais puros exercícios
do espírito.
E eu ainda: devagar,
em órbita fechada,
no tempo,
o melhor templo.
2
Inclino na folha
a imprecisão de Deus
Quieto na idade
eu já ouvira
o verbo feito luz
Tacteio o nome
incerto
Fixo o lamento
para a eternidade
3
Na sala ouvia os animais
que nunca vira
e a mão de Deus
batia nos pinhais
Estou só e cheio
do pavor do espaço
o céu abre-se ao meio
e cai-me no regaço
Tão feminino
seu gesto na brancura
dá-me o destino
a troco da loucura


Armando Silva Carvalho, As Escadas não têm Degraus

http://poesiaseprosas.no.sapo.pt/

domingo, outubro 15, 2006

(d)esse campo minado a que chamamos destino




















Outubro

Caroço de tempestades,
Nó de cobras ardentes,
Este é um mês de chuvas cálidas
E de ventos.

Subversivo ao calendário,
Fruto amargo
Na colheita ancestral.

É sempre outono
Em outubro,
É sempre vento.

Nenhuma cintilação,
Somente o escuro

E no escuro esta sombra,
Graciosa e febril,
Dançando à luz dos raios

— o canto áspero
E o pescoço
Carregado de contas.

É sempre guerra
Em outubro,
Sempre vermelho e azul.

Sempre pendões na ponta
Das estacas
Desse campo minado
A que chamamos destino.

Miriam Fraga, Brasil

quarta-feira, outubro 11, 2006

recolher obrigatório

Infelizmente/ a cicatriz/ já não te desfeia
José Craveirinha

Não sabia que força a sustentava e impelia a enfrentar as manhãs monocórdicas e sem mistério onde tinha mergulhado naquele dia, em que o sol começou a parecer-lhe demais para os seus olhos carcomidos. Niniguém os via assim, ludibriava a todos com o seu ar espantado e límpido, mas já nada a encantava como dantes e o riso tinha desaparecido para sempre de dentro de si. Para sempre? Alguma coisa, em nós, se parte, ao ponto de dizermos para sempre? Não sabia, nem a incomodava a resposta. Sabia que os dias ensombrados se perfilavam como um muro intransponível, árvores cerradas como perfis humanos de silêncio.

Um recolher obrigatório a trazia envolta em si mesma, sem que nada do exterior a fizesse voltar à tona. Afogava-se assim lentamente, embora chorando cada vez menos, pois as lágrimas de longo curso impediam-lhe os movimentos e normalidade. Fora então que aprendera aquele gemido que cada vez menos se ouvia, e soltava umas lágrimas como se espremesse os olhos da poeira. Depois continuava, como poeira tudo fosse. E era.

Precisava talvez da mãe, a que ainda gostaria de salvar da escuridão do esquecimento, talvez pudessem as duas perceber em que nó de mudez se tinham tornado longínquas e sofredoras com a distância. Tinha ouvido, nesse mesmo dia, uma mulher, na rua, falar à mãe com impaciência, a roçar a hostilidade. Lembrou-se de quantas vezes tinha falado assim, como se já lhe fosse tudo insuportável. Não sabia,nesse tempo, que tudo, mas tudo, pode ser de uma falibilidade monstruosa, e que uma voz de mãe é como uma casa aquecida quando tudo gelou.

Nada a devolvia à integridade de alegria de que se tinha feito parteira ao longo de anos, em que inventara palavras, gestos e risos para ela mesma e para quem estava em seu redor.Alimento mais escasso do que muitos pensavam. Às vezes, era preciso ir muito fundo até encontrar o resquício que dava para alimentar a ilusão. Depois, começava o jogo do recolhimento e nele ficava até ser obrigada a asssitir alguém, com o seu riso e o seu olhar de espanto permanente.

Agora, talvez com alguma paz, permitia-se baixar o olhar e não fingir nada. A voz era pouca para alimentar conversas e risos. Mecanicamente levantava-se e preparava mais um círculo na jaula em que movia. Lentamente, sem coragem nem nada, percorria as vezes necessárias até o ciclo do dia se fechar e os outros darem por terminada a sua prestação quotidiana.

Só os amigos lhe chegavam dentro, comovidos e ilesos de pecado, contornavam-lhe os passos e lembravam-na como era, como fora, como queriam que fosse. Para sempre. Este para sempre era afinal possível e exacto. Como o amor ou o ódio que não se cura, como o esquecimento que se intala na mente, como este bem querer que habitava alguns dos seres que lhe partilhavam a vida, e a renovavam por si, na sua vez, até que ela de novo acordasse.

armandina maia

sábado, outubro 07, 2006

fronteiras ao acaso

aos putos, que não sabem onde mora a porta do futuro

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fotografia de Paulo Spranger


Quando perceberam que as casas estavam vazias e que nada sabiam sobre o mundo em volta, começaram a construir uma família, que começava pelos gatos e acabava nos cães. Isto foi quando deram de caras com os reality shows e umas opiniões vagas sobre o estado do país, que parecia ruir como um castelo de cartas.

Todos tinham ouvido falar das conquistas do 25 de abril, mas o desencantamento dos pais mais parecia à beira de um abismo. Aliás, com excepção dos telejornais que passavam nos intervalos do futebol, nenhuma notícia do mundo lhes chegava aos ouvidos.Por isso se fechavam numa mudez difícil de perceber, que dava muito dinheiro a ganhar, entre divãs de psiquiatras, psicólogos e gentes de outros saberes misteriosos.

Como num puzzle, todos estavam no espaço certo: era só preciso saber encaixar as peças no vazio. Vazias. Eram assim todas as casas, sem cheiro de cão nem de comida.Os pais não. Dificilmente seriam vazios, porque lhes tinham dado vida e algum carinho. Muitos, porém, mal disfarçavam como era difícil entender aquele modo de estar na vida, sem “furar” pelo meio dos outros, à procura de uma oportunidade de aparecer na televisão. Dos pais não queriam falar com ninguém, apesar das noites compridas lhes desenharam olheiras antes do tempo. Dos pais não queriam falar com ninguém, apesar de continuarem a desenhá-los como quando eram pequeninos, de mãos dadas e a gostarem muito um do outro. Se discutiam, não ouviam nada, era como se fosse um filme. Tudo ia acabar bem e a casa ficaria em ordem, outra vez, com toda a gente abraçada.

E depois, havia a televisão. Tapava tudo. Todas as bocas, nem se ouvia o silêncio dos garfos que empurravam a comida para as bocas, silenciadas. Às vezes em suspense, quando o jantar tardava e comiam ao som do survivor ou dos ficheiros secretos? Abençoada televisão, que não deixava ninguém falar, e assim notava-se menos aquela saudade dos abraços, dos beijos à hora de ir para a cama.

O que mais os fascinava, eram os filmes que alugavam nos clubes de vídeo, uma espécie de cinema em casa que ninguém parecia proibir. Ficavam horas à roda da ideia, e alugavam-nos mesmo que não os vissem ou os deixassem dias e dias em cima das mesas, sem dono aparente. O que salvava a situação, era aquelas chamadas de atenção do club de vídeo para regularizar a conta.

Nem isso fazia os pais acordar. Ninguém via as beatas no chão, os pratos de plástico queimados, os tapetes esburacados, os pratos no lava-loiça, secos, a deitar por fora, com a máquina de lavar loiça vazia.Se entrasse alguém de repente, haviam de procurar uma desculpa para aquela desordem “a empregada está doente” ou coisa assim. Ninguém podia mostrar uma casa assim aos olhos de estranhos, nem que fosse o homem do gás.

Estranhamente, porém, tocava o despertador e a família disparava inteirinha em fila indiana, a disputar a casa de banho, trocando pelo meio alguns sinais de amor familiar: “despachas-te, ou quê?” “ lá vou eu chegar atrasado” “é sempre a mesma coisa com esta gaja”. Mesmo assim, saíam com a certeza que estavam vivos e inteiros, para depois contar bocadinhos aos amigos, que tinham todos, mais ou menos, a mesma história para contar. Horas a ouvir sermões pelas latas abertas e deixadas ao acaso, pelas embalagens vazias deixadas no frigorífico a dançar sozinhas, num estranho bailado de papel.

E sempre a televisão, aquele aparelho salvador da surdez generalizada, a vomitar informações que todos comentavam como se soubessem a verdade. Pareciam estrelas de cinema, ali, em casa, a dizer toda a verdade sobre o mundo! E eles sem saberem sequer do que se estava para ali a falar. Mais bush menos bush, mais laden menos laden, de que mundo falariam, tão longe daquelas vidas onde se sentavam todos os dias?
Com tantas viagens em família, e tantos países que conheciam, eram forasteiros como os cowboys de outros tempos: passavam, rumo às praias, compravam umas prendinhas na volta, e chegavam com um bronze que fazia morrer de inveja quem estivesse nas proximidades.

Iam e vinham, ilesos pela ignorância, e tolhidos pelo medo que os questionassem: por isso se entretinham a contar histórias banais, que aconteciam a todos. As passagens na fronteira, o tempo da viagem, a comodidade do avião. A viagem era ir e voltar: não acontecia nada pelo meio.

Eram aquelas as fronteiras ao acaso, perdidas num mapa que não conheciam como tinha nascido nem porque estava ali. Delas ficavam só umas tantas fotografias para a colecção familiar, que alguém havia de juntar, mais dia menos dia.


armandina maia

domingo, outubro 01, 2006

carta a um amigo que mora ao lado

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desenho de António Ferra

Amigo, Depois de tanto silêncio, escrevo-te para te contar de um porquê que nem eu sei, acabrunhada como ando, pelo estado do país, pelo desvario do mundo, pela infâmia que se acumula por toda a parte, como se fizesse parte de um ecosistema. Talvez por isto ou porque os anos, de repente, caíram sobre nós como uma coisa inevitável e, apesar da tão falada esperança de vida, começamos a perder a esperança no futuro. Não queremos confessar a ninguém, nem a nós mesmos. Todos esperamos “ver” o milagre acontecer antes do nosso tempo se ter esgotado. Mas também todos sabemos que as guerras vieram para ficar e que os seres humanos continuam sujeitos, como outrora, a condições desumanas e proibidas perante todas as leis de todas as religiões: renovam-se as escravaturas e as servidões e os “salvadores” continuam a torturar prisioneiros, mostrando o seu lado hediondo e grotesco. Pensámos que tinha passado, que tínhamos uma era nova pela frente. Mas há gente vendida e emprestada, como coisas que sabemos que não são. E há gente que vai ficando sempre para trás, sem casa, sem terra, submersa por forças da natureza que os governos centrais se esqueceram de colmatar. É tudo gente, como nós, como tu e eu. Ficam anos a fio, encurralados em jaulas, com os defensores oficiais a proferirem belos discursos nos Parlamentos. E morrem. Já não se contam com exactidão, de tantos que são. Não vivemos no meio deles, é certo, mas vivemos com isto atravessado nos nossos corações e nos sonhos que desenhámos um dia. Vemos como a impunidade galga fronteiras e se instala, ultrapassando todas as regras, como um terreiro deserto onde não mora ninguém. Esta cela para onde nos arremessaram tornou-se fria e estupidamente pequena. E o céu baixou sobre as nossas cabeças. De vez em quando telefonamos aos amigos, a dizer que estamos vivos e que gostamos deles. Mas já não nos vemos com a alegria que morava em nós. Arrastamo-nos para os encontros, os jantares de aniversário, as ocasiões festivas. Mas já não nos encontramos nos cafés, nas esquinas, debaixo das árvores, a tagarelar e a rir de tudo e de nada. Cumprimos os rituais mínimos para sentir a própria pele, mas alguma coisa esfriou dentro de nós, como um peixe morto que continua no aquário. É claro que inventamos as forças necessárias para ir à luta quando é mesmo preciso. Descemos as avenidas, em bandos, até parecemos alegres. Mas depois voltamos ao canto que escolhemos, o nosso canto, de onde só saímos para trabalhar umas horas, iludindo o vazio que se apoderou de nós, como o tal peixe que só ilude o olhar. Estamos baços e lassos, amigo. Por isso te escrevo. Para explicar as minhas ausências inexplicáveis. Para me recuperar e recuperar-te. Ainda nos temos uns aos outros, a lembrar, vigilantes, que a desordem e o caos hão-de ter um fim. E que ninguém pode, por nós ou em nosso nome, continuar a algemar-nos a alegria de existir. Estamos com todos, estamos todos, estamos vivos. Estamos. Abraços. Como sempre. armandina