La casita blanca cantada por Juan Manuel Serrat
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A minha avó nunca teve tempo para se sentar e olhar o rio. O tempo passara por ela muito depressa, tornara-a mais baixa, cheia de rugas, osso, mágoas e apreensão.
A minha mãe morrera, eu vivia com o meu pai, na Bica, e a minha avó andava sempre atrás de mim, perguntando-me, desassossegada, se eu comia bem: fruta, leite, bifes.
Quando desci a colina da Ajuda e me instalei naquele bairro, a meio da cidade, após uma soturna viagem de carro eléctrico, o meu pai prendeu a minha mão na sua e foi dizendo: «Gosto muito de ti. E, agora, tenho de gostar de ti duas vezes: por mim e pela tua mãe». Começámos a viver numa parte de casa. O meu pai trabalhava de noite, dormia de dia, e eu dependurava-me nos elevadores, a ocultas do revisor da Carris. Se me visse naquele propósito, dava-me com o alicate nos dedos.
Os elevadores iam do Calhariz a São Paulo. Belos nomes.
Quando a minha avó me visitava fazia-se uma pausa no tempo. Ela sentava-se no degrau da soleira da porta e contava-me as ocorrências no bairro onde nascêramos. Olhava-a com desvelo e à beleza do seu rosto majestoso, comparável ao busto de uma estátua.
O virar dos anos fez-me pensar como é que ela mantivera o porte e a teimosia da esperança, numa casa e numa família onde se chorava demasiado.
Ao despedir-se enfiou a mão na bolsa colocada por detrás do avental e deu-me umas moedas.«Come bolas de Berlim, dão grande sustentação ao corpo». A bolsa tinha a forma de um oito, com a base mais larga, e três compartimentos: para as notas, para as moedas de prata e para as de cobre. A minha avó era dona de um bom par de mãos arcaicas. Fizera renda, trabalhara numa fábrica de merino e, agora, vendia peixe. A bolsa era um artefacto de pequenos quadrados de flanelas coloridas e sobrepostas, e exalava um discreto cheiro a peixe.
A minha avó gostava de passar a mão direita, como uma carícia, na zona do avental sob a qual estava a bolsa. Dizia que o dinheiro jamais se acabaria, porque se sentia reconfortado e grato com os afagos.
A verdade é que a bolsa nunca esteve vazia para quem, na família, de auxílio precisasse.
Era uma avó que nunca procurara, na leitura, desvendar os mistérios do mundo. Aliás, lia com extrema dificuldade. Para ela, o maior de todos os poetas era João Linhares Barbosa, parente afastado, letrista de fados que falavam de sardinheiras, de amores vadios, de mulheres fatais e de ruinosas amizades.
A glória estremecida de Linhares Barbosa devia-se à circunstância de haver escrito alguns fados para Amália. Quando se cruzava com a minha avó, tirava o chapéu, num gesto ameno e circunspecto. «Um homem de grande respeito. Até vai a todos os enterros».
O Beco do Xadrez, junto ao Largo da Paz, já não existe. Um pedaço de terra entre lágrimas, e só se chegava lá com conhecimento de causa. A minha avó viveu ali uma abundância de anos. Uma casa térrea, duas divisões, uma talha com água sobre a qual permanecia um pano enorme, molhado, para manter a frescura. Acendia o candeeiro a petróleo, sentava-se à beira da cama e meditava nessa dor humilde e secreta que apenas o silêncio entende.
Nunca descortinei porque motivo uma mulher tão atropelada pela vida, tão marcada de padecimento, era conhecida pela Maria Palhaça. Entre nós, a Avó Palhaça.
A Avó Palhaça que sobrevivera a mortes, a desempregos, a afrontas infinitas sem o mais breve queixume ou a mais ligeira imprecação. A Avó Palhaça, canastra à cabeça, a subir o Aterro, pequena de tamanho, grandiosa na sua luminosa humanidade.
A Avó Palhaça, que tinha uma bolsa inesgotável, feita de lindos retalhos coloridos.
A minha avó nunca teve tempo para se sentar e olhar o rio. O tempo passara por ela muito depressa, tornara-a mais baixa, cheia de rugas, osso, mágoas e apreensão.
A minha mãe morrera, eu vivia com o meu pai, na Bica, e a minha avó andava sempre atrás de mim, perguntando-me, desassossegada, se eu comia bem: fruta, leite, bifes.
Quando desci a colina da Ajuda e me instalei naquele bairro, a meio da cidade, após uma soturna viagem de carro eléctrico, o meu pai prendeu a minha mão na sua e foi dizendo: «Gosto muito de ti. E, agora, tenho de gostar de ti duas vezes: por mim e pela tua mãe». Começámos a viver numa parte de casa. O meu pai trabalhava de noite, dormia de dia, e eu dependurava-me nos elevadores, a ocultas do revisor da Carris. Se me visse naquele propósito, dava-me com o alicate nos dedos.
Os elevadores iam do Calhariz a São Paulo. Belos nomes.
Quando a minha avó me visitava fazia-se uma pausa no tempo. Ela sentava-se no degrau da soleira da porta e contava-me as ocorrências no bairro onde nascêramos. Olhava-a com desvelo e à beleza do seu rosto majestoso, comparável ao busto de uma estátua.
O virar dos anos fez-me pensar como é que ela mantivera o porte e a teimosia da esperança, numa casa e numa família onde se chorava demasiado.
Ao despedir-se enfiou a mão na bolsa colocada por detrás do avental e deu-me umas moedas.«Come bolas de Berlim, dão grande sustentação ao corpo». A bolsa tinha a forma de um oito, com a base mais larga, e três compartimentos: para as notas, para as moedas de prata e para as de cobre. A minha avó era dona de um bom par de mãos arcaicas. Fizera renda, trabalhara numa fábrica de merino e, agora, vendia peixe. A bolsa era um artefacto de pequenos quadrados de flanelas coloridas e sobrepostas, e exalava um discreto cheiro a peixe.
A minha avó gostava de passar a mão direita, como uma carícia, na zona do avental sob a qual estava a bolsa. Dizia que o dinheiro jamais se acabaria, porque se sentia reconfortado e grato com os afagos.
A verdade é que a bolsa nunca esteve vazia para quem, na família, de auxílio precisasse.
Era uma avó que nunca procurara, na leitura, desvendar os mistérios do mundo. Aliás, lia com extrema dificuldade. Para ela, o maior de todos os poetas era João Linhares Barbosa, parente afastado, letrista de fados que falavam de sardinheiras, de amores vadios, de mulheres fatais e de ruinosas amizades.
A glória estremecida de Linhares Barbosa devia-se à circunstância de haver escrito alguns fados para Amália. Quando se cruzava com a minha avó, tirava o chapéu, num gesto ameno e circunspecto. «Um homem de grande respeito. Até vai a todos os enterros».
O Beco do Xadrez, junto ao Largo da Paz, já não existe. Um pedaço de terra entre lágrimas, e só se chegava lá com conhecimento de causa. A minha avó viveu ali uma abundância de anos. Uma casa térrea, duas divisões, uma talha com água sobre a qual permanecia um pano enorme, molhado, para manter a frescura. Acendia o candeeiro a petróleo, sentava-se à beira da cama e meditava nessa dor humilde e secreta que apenas o silêncio entende.
Nunca descortinei porque motivo uma mulher tão atropelada pela vida, tão marcada de padecimento, era conhecida pela Maria Palhaça. Entre nós, a Avó Palhaça.
A Avó Palhaça que sobrevivera a mortes, a desempregos, a afrontas infinitas sem o mais breve queixume ou a mais ligeira imprecação. A Avó Palhaça, canastra à cabeça, a subir o Aterro, pequena de tamanho, grandiosa na sua luminosa humanidade.
A Avó Palhaça, que tinha uma bolsa inesgotável, feita de lindos retalhos coloridos.
A minha avó da Ajuda.
Baptista-Bastos
3 comentários:
Quanta sensibilidade, Deus meu.
Um texto inesquecível.
Gente humilde e , tanta vez, gente tão, tão, tão grande!
Lembras-te do meu post, chamado justamente Gente humilde?
:-)****
P.S. - Como estamos com a música?
Há quantos anos não ouvia esse nome: Juan Manuel Serrat.
Abraço,
Alece
Belo texto, belo post. Eu penso que todas as avós tricotaram a memória dos netos com fios de ternura e saudade para eles desfiarem vida fora. Vieram de longe e foram para longe, mas no dia a dia damo-nos conta de que nunca nos abandonaram.
Propranolol agradece a MAM.
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