segunda-feira, fevereiro 27, 2006

Luís Amorim de Sousa: o verbo Trafalgar

www.londonphotos.org

O verbo Trafalgar

para o Alberto de Lacerda

"I hear continual echoes from the Thames"
Walt Whitman

não foi para isto que eu me despedi
de tanto
que tanto amava

o sítio
para começar
a caminhada de casa até ao metro
a tentar desvendar diariamente
o mistério da herbácea e do tijolo

e que janelas
e que janelas por dentro

um dia
numa vidraça
vi um papel com uns garatujos assim
I LOVE YOU RICHARD COME BACK

em frente havia uma fonte
vitoriana
municipal
sem água
comemorava uma data
que nunca fui capaz de decorar
ese ra lao a ua que e mais pfeia

degraus
uma rampazinha
e as roseiras da casa do actor
que abria a porta como se estivesse em cena

: good morning
do I detect
a little gloom in the sky?

"Então, meia-noite!"
pensava eu logo com
os meus botões

é claro que ninguém sabia nada
de versos e de poetas portugueses
e muito pouco de mi
a cirandar por ali
com pensamentos desses na cabeça
comunque
como diria
Giorgio
saudoso Giorgio

Giorgio Verrecchia
para mim
Giorgio Maggiore
esse também apareceu
assim só
só por amor

chegou com uma mochila às costas
tocou a campainha e anunciou
: vim por ti

Tessa quase nem queria acreditar
apertou-o muito muito e disse
: fica
Giorgio ficou par sempre

o que eu nunca percebi foi como Londres
teve alma para o manter fora de portas

comigo não foi assim

entrei na estação do metro
apontei o destino
e lá fui eu
a conjugar o verbo Trafalgar

Luís Amorim de Sousa, O Verbo Trafalgar, Casa da Moeda

http://www.secrel.com.br/jpoesia/lamorim.html

Nuno Júdice: as mulheres azuis do equinócio

http://www.bestiario.com.br/2.html

Vi as mulheres azuis do equinócio
voarem como pássaros cegos; e os seus corpos
sem asas afogarem-se, devagar, nos lagos
vulcânicos. Os seus lábios vomitavam o fogo
que traziam de uma infância de magma
calcinado. A água ficava negra, à sua volta;
e os ramos das plantas submersas pelas chuvas
primaveris abraçavam-nas, puxando-as num
estertor de imagens. Tapei-as com o cobertor
do verso; estendi-as na areia grossa
da margem, vendo as cobras de água fugirem
por entre os canaviais. Espreitei-lhes
o sexo por onde escorria o líquido branco
de um início. Pude dizer-lhes que as amava,
abraçando-as, como se estivessem vivas; e
ouvi um restolhar de crianças por entre
os arbustos, repetindo-me as frases com uma
entoação de riso. Onde estão essas mulheres?
Em que leito de rio dormem os seus corpos,
que os meus dedos procuram num gesto
vago de inquietação? Navego contra a corrente;
procuro a fonte, o silêncio frio de uma génese

Nuno Júdice, Encantamento

http://www.universal.pt/scripts/hlp/hlp.exe/artigo?cod=2_350

http://www.lumiarte.com/luardeoutono/nunojudice.html

domingo, fevereiro 26, 2006

Paulo Teixeira: le ceneri di Pier paolo Pasolini

(...)
Porque obsceno é tudo o que eles gostariam
de fazer mas não são capazes, continua invencível
a luz do céu nos teus olhos, e essa claridade
que há muito te distancia do mundo como
(quisessem eles) a auréola dos arcanjos.

(...) in A Região Brilhante

http://www.meet.asso.fr/livres/teixeira_por.htm

domingo, fevereiro 19, 2006

Pier Paolo Pasolini: in quei giorni la mia vita, il mio lavoro erano pieni

www.fermenti-editrice.it/
A un figlio non nato

(...) Un vechio cavallo marrone, in fondo, sull'erba umida,
un'automobile vuota, in mezzo ai cespugli,
e non lontano, qua e là, festosi echi di spari:
tutt' intorno era pieno di coppie, ragazzi e poveri.
in quei giorni la mia vita, il mio lavoro erano pieni,
nessuno squilibrio, nessuna paura mi minacciava:
ero andato avanti per anni, prima per fisica grazia,
- mitezza, salute e entusiasmo che ho avuto nascendo,
poi per una luce di pensiero, benché incerto ancora,
- amore, forza, e coscienza che ho acquistato vivendo.
Eppure, primo e unico figlio non nato, non ho dolore
che tu possa mai esser qui, in questo mondo.

Pier Paolo Pasolini, La religione del mio tempo

José Agostinho Baptista: as folhas do pensamento e algumas árvores, quase tudo acabava em ti.

http://imbricacoes.blogs.sapo.pt/
Adolescência

Plantaram uma única figueira na margem dos
teus domínios.
Anoitecia.
Os cães, os pássaros,
as folhas do pensamento e de algumas árvores,
quase tudo acabava em ti.
O sono crescia no meio dos jardins alucinados.
As conchas fechavam-se sobre as pérolas de
sangue das irmãs.
Era tão simples amar as lágrimas delas, aos pés da cruz.

A lua cheia parava em agosto e batia na
janela de um sonho puro.
Os figos caíam através do verão.
Rebelde, incendiavas esse tempo.
Ainda crescias.

José Agostinho Baptista, Agora e na hora da nossa morte

http://www.jabaptista.net/

Fernando Namora: é a vida que pergunta quando acaba

http://www.megazona.blogger.com.br/
Evidência

Poderão dizer que minto,
mas no dia em que a gente sabe
que peso era este
a pesar nos braços,
e se acorda a infância
que neles dormia,
nesse dia
começa-se a morrer
mais depressa
e a assistir à morte
em cada instante recomeçada.
a infância foge dos braços
mas o peso continua:
é a vida que pergunta
quando acaba.

Fernando Namora, Marketing
http://www.iplb.pt/

quinta-feira, fevereiro 09, 2006

Camões (em) boas mãos: ta muda tenpu, ta muda vontadi


Pintura de Abel Manta (1888-1982), descrevendo o largo de Camões
www.arqnet.pt

Ta muda tenpu, ta muda vontadi,
Ta muda ser, ta muda konfiansa;
Tudu mundu é fetu di mudansa,
Ta toma senpri nobus kolidadi.

Sen nunka pára nu ta odja nobidadi,
Diferenti na tudu di speransa;
Máguas di mal ta fika na lenbransa,
Y di ben, si izisti algun, ta fika sodadi.

Tenpu ta kubri txon di berdi manta,
Ki di nébi friu dja steve kubertu,
Y, na mi, ta bira txoru u-ki n kantaba

Ku dosura. Y, trandu es muda sen konta,
Otu mudansa ta kontise ku más spantu,
Ki dja ka ta mudadu sima kustumaba.

Luís de Camões,tradução para cabo-verdiano de José Luís Tavares

http://aulil.blogspot.com/2005/08/joo-vrio.html

quarta-feira, fevereiro 08, 2006

Adélia Prado: minha tristeza não tem pedigree

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

Adélia Prado, Com licença poética
http://www.releituras.com/aprado_bio.asp



Eduardo (Guerra Carneiro) : afinal, acabo sempre por falar de ti

Aqui de novo estou, cantiga, neste
lugar de eleição onde retomo a escrita.
É um vagar premeditado, no regresso ao corpo,
em demorado gosto de bebida dupla. Reparo: a carga
das palavras, canga difícil para quem
deste modo quer fazer o mosto. A poesia
já regressa, por entre cortinados e veludos
e o quarto, a sala, os corredores, o vão
da escada, ressoam com os seus passos,
afinal tão leves - a neve no soalho,
difícil no silêncio. Dizia do regresso; assim
desfaço os nós do medo: floresta e engano,
areal distante. Sorris e tudo é novo.
Sim: acabo sempre por falar de ti.

Eduardo Guerra Carneiro, Contra a corrente

http://www.eduardopitta.com/bibliografia.html

domingo, fevereiro 05, 2006

Armando Baptista-Bastos: os retratos são feitos para eliminar o tempo

http://www.warhols.com/fashion.html
Pouco de minha mãe me lembro. Ocasionalmente, sabes?., examino o retrato oval, olho-a nos olhos, com ela converso, penso no colar de pérolas artificiais que traz ao pescoço, que foi feito do colar?, as coisas perdem-se assim?, os objectos de estimação desapareceem como?, fazem-se em pó?; nada se perde, tudo se transforma?; observo minucioso o nariz direito e equilibrado, as maçãs do rosto, os retoques subtis que o fotógrafo executou, o esfumado cinzento por detrás. Como seriam as suas mãos? (...) Os retratos são momentos fixados que se perdem nos próprios momentos. Os retratos são feitos e conservados para imaginarmos uma certa contagem do tempo. São feitos para eliminar o tempo, não para o conter. Porque nenhum retrato contém o movimento ondulante das mãos, o som das vozes, o testemunho de uma intrusão, a revelação do amor.Os retratos são a extensão do que imaginar se possa. Posso observar um retrato e dar-lhe a dimensão que pretender: os retratos são alvitres para inventarmos o mais imutável dos corpos e regularmos o mais enigmático dos hábitos. Os seus limites só então são transponíveis. Isto quer dizer que o retrato de minha mãe nada me diz de minha mãe; a não ser que a invente, como a ti eu te inventei. (...) Volto ao retrato; volto ao retrato porque, há tempos, comecei a pensar que muitos dos meus tormentos e apoquentações provinham da circunstância de passarem anos e anos se, ao menos uma vez, eu ter fixado o retrato de minha mãe, falar-lhe, tentar reconhecer os sinais ocultos, a natureza secreta daquele olhar, o religioso distanciamento em que aparece envolvida. Tê-la, enfim. E associar, de modo instintivo, a ideia de que lhe pertenço, pertencendo-me a ela.

Baptista-Bastos, Um homem parado no inverno

quinta-feira, fevereiro 02, 2006

a guerra das estrelas

(...) Vejo-o, diante dos senhores da decisão, que não lhe viam as mãos grandes nem as suas razões, as razões dos dois lados, que agora porém, bem sabemos que podem coexistir.
Oh! se podem coexistir, dentro de nós mesmíssimos, os indecisos do partir ou de ficar, os virtuosos a favor e contra a guerra colonial, os fundadores de uma escola inteira que se arrastava pelas praças e cafés, como um exército de folga, ou uma nobreza desocupada que se diferenciava pela ternura com que falava dos seus súbditos, a devanear por entre os muros, entremeados de filmes checos que ninguém compreendia mas tinha que explicar, (...) e então ver-se-ia quanta gente ia de falsete à ópera, para ser visto no fim da missa, para estender o bóné, a ponta da saia, lançando um olhar de soslaio, entendedor, conivente e promissor de novas óperas. (...)

maria armandina maia, dedicadamente sua, 2001