quinta-feira, fevereiro 01, 2007

aprender a olhar as estrelas



para as muitas joanas que este país (não) conhece

Conheci o David como um perdedor nato, camuflado num andar desleixado, a encolher as pernas (e as repetências), altas demais para a sua idade. O seu currículum falava por si. Várias retenções (leia-se repetências) na escola primária, e a coragem de não ir às aulas, ficando-se não se sabe por onde.
Chegou à escola indolente e (aparentemente) alheio, com um ar infeliz de quem está não está ali a fazer nada. Falava pouco de casa. Ninguém lhe perguntou por onde andara nos meses todos em que tinha faltado à escola. Parecia descrente, quase resignado, a cumprir a sina (ou a pena) de ter de estar ali. Sem nada daquilo que trazem os alunos, cadernos, lápis, canetas, livros, mochilas, puxava a custo de um bloco de folhas amarfanhado, uma espécie de dossié para todo o serviço.
Logo num dos primeiros dias, lancei-lhe o desafio, à espera de acertar nalgum nervo daquelo corpo franzino, precoce e apagado. Perguntei-lhe se trazia o bloco de notas na barriga para se proteger das balas dos bandidos.
Cintilaram os seus olhos. Podia ter sido ali, como em dia nenhum. Mas acho que acertei na bala que disparei. Tudo um bocado às cegas, com o instinto e a fidelidade canina com que persigo a esperança de mudar as voltas à vida.
No dia seguinte, um outro David apareceu à porta da sala: Já no meio da aula, cheguei-me perto para ver as mudanças com os meus olhos: o David escrevia, imperturbável, a desafiar as leis da gravidade que até ali sempre lhe tinham conduzido a vontade.
Vi a sua caligrafia espraiar-se, perfeitamente alinhada à esquerda, sem riscos nem hesitações. Uma letra de quem pensou muito, em muitas coisas que a nossa imaginação conhece, fértil em histórias de crianças sem história.
Para minha grande sorte, o tiro tinha acertado no alvo: o David percebeu que tinha uma palavra a dizer e que não havia nenhuma condenação perpétua nos seus 14 anos. Se o passado não lhe pertencia já, o futuro ainda poderia ser seu.
Foi eleito delegado de turma, cumprindo o mandato entre críticas e aplausos (era um bocado bruto com o pessoal das hostes inimigas, por causa do Wrestling, a sua paixão).
Saiu da Escola quase tão ingénuo como tinha chegado, ainda inábil e ainda inseguro, a disfarçar, como podia, o medo de crescer.
Mas antes, no último teste - apesar da sua avaliação, decidida entre ambos, penalizar as faltas de trabalhos de casa, baixando o seu nível de quatro para três- brindou-me com um molhe de palavras:


S'tôra, desejo que seja muito feliz


Escreveu com a sua letra firme e regular, no canto do teste, à laia de despedida.
Outro dia, veio visitar-me. Só dar um beijinho, ao portão, como mandam as regras. O seu olhar tinha crescido.
Dizia “professora” em vez de “você”, e tinha abandonado o “diga lá” com que entrecortava os diálogos. Gostava da nova escola e dos colegas. Já tinha caderno e mochila, que arrastava consigo todos os dias.
Um aluno como os outros, agora estirando as suas longuíssimas pernas entre rasteiras e jogos de bola. Um aluno como tantos outros, que não têm o futuro escrito nas estrelas, mas, se calhar, aprenderam a olhá-las.



Maria Armandina Maia

4 comentários:

tsiwari disse...

tantas vezes basta aquele muito pouco, de que se socorrem as almas sensíveis, para ser capaz de mudar uma vida...


***

Anónimo disse...

vou reencaminhar.

bettips disse...

"Porque a palavra ainda há-de ser responsável e reescrever com alguns um mundo novo": que coisa mais linda de ler. Uma esperança que gostaria de possuir... O lugar das crianças excluídas só pode ser o coração. Como fazes. Bjinho

alecerosana disse...

armandina
Com as suas palavras tão bem desenhadas conseguiu comover-me.
Um abraço bem grande!