sexta-feira, setembro 30, 2005

atalhos para a recomposição da vida

Atravessa a amargura sem lá ficar, com uma candura quase inocente, quase proibida.
Solta o riso para vencer o cerco e o medo, por isso o inscreve como uma senha, para contar os sonhos que afagam a cabeça de todos os homens, por mais imperfeitos ou cruéis.
Detém-se nas coisas pequenas e insignificantes: passos de meninos no corredor, conversas abafadas na mesa ao lado, um pássaro morto que o magoa. Ao lado, corre nos shoppings a burguesia endinheirada e sôfrega, que só não lhe atravanca o passo, porque ele conhece bem os atalhos que levam às clareiras virgens das florestas.

mar, um traço repetido sobre a pele

António Ferra, mar 1, 2005

Respiro o sol da mesma maneira que olho as cadeiras à volta do mar, com um resto de luz na fundura dos olhos, um traço repetido sobre a pele. Se não fosse o corpo escondido quando as aves passam, podia experimentar a praia com as palavras. Mas é tempo para que o corpo se divida e se multipliquem as células, até se tornarem invisíveis nos objectos de mármore, nos bibelôs dos dias.

António Ferra, A estação suspensa (inédito)

passos e paços de família

De mão dada, pai e filha percorriam as avenidas entre árvores, estranhos seres que cresciam devagar, esmagando o sol, entre a folhagem espessa e as neblinas matinais que tornavam as horas mais lentas.
Nenhuma palavra se soltava entre eles, aparentemente a olhar descuidados o arvoredo que crescia, enquanto se deixavam tomar pelo ar pacífico que os rodeava, como se um halo eterno pairasse sobre as suas cabeças.

A menina ajuizada que passeava com o pai naquele deleite, ficou-lhe para sempre na retina, como um quadro pintado por um pintor romântico. Sem cores nem flores, voltava sempre a imagem dos dois, a caminhar devagar como se a eternidade fosse deles.
Bastava-lhe, numa embrulhada de recordações, aquele par de mãos dadas que se recolhia a casa depois do pôr do sol, como se lhes tivesse chegado uma meia hora para serem pai e filha. Sem palavras, sem ornamentos, sem promessas, quase sem nada.

Nelson Saúte, New Orleans revisitada ou a(s) geminações inevitáveis













New Orleans
Amo-te no sobressalto da América
com o trompete de um blues irredimido
mãos enxutas destes versos sem luto
para cantar uma saga negra dos mapas
na solidão de New Orleans.
Agora oiço o wonderfull world
do impenitente Louis Armstrong
na minha irresgatável África.
Amo-te ao som de uma noite rasgada
na mágoa de uma dor incessante
com estas inofensivas mãos florindo
impúberes pelo teu corpo.
Amanheço no caudal do rio que invade
a cidade minha casa também esvoaçada.
A casa de madeira e zinco da minha infância
de onde me chegavam a América
as vozes do blues na Munhuana
na algazarra dos xiguevengos.
Este foi o meu destino irrecuperável
nas ruas sem nome desta urbana incongruência
e xitala-mati não é um velho filme sem legendas
exibido nas matinés do cinema Império
nas sessões para adultos
que eu tinha acesso apenas da avenida de Angola
mas o roteiro iniciático dos meus dilúvios.
Mais tarde o Noel Langa tentou salvar-nos
a memória e albergou os boémios aos gritos
nomeando mulheres e amores contrariados
na espuma de cerveja clareando as noites de sábado
e os músicos suburbanizando os convivas da Polana.
Agora que tenho no bornal alguns mortos
quase todos enterrados no Lhanguene
e um irmão sul-africanizado pelo destino
insepulto entre as montanhas em Malelane
dou-me conta de que foi há muito
que aquelas águas devastaram a minha infância.
Amo-te no sobressalto da América
no chão úbere do meu atafulhado bairro
olho as varandas onde drapejam
nossos íntimos trapos e imagino viagem.
Tantas cidades Joanesburgo aqui perto.
A minha primeira América na voz de tenor do Mike
um negro fabuloso certamente desterrado de New Orleans
arrebatando-nos. Acena-me entretanto
o incontornável Miles Davis
numa manhã na Greenwich Village com Nova Iorque
já sem as malogradas Twin Towers.
Amo-te no sobressalto da América
ainda oiço as notas soltas dos velhos e roucos
cantores vagabundos. Memphis Sleem andou por cá.
Esta noite quero ouvi-lo a sós contigo.
Agora vôo no Big Bird de Ahmad Jamal
quase a deixar-me esmagar nas teclas deste piano
com a dor daqueles que em New Orleans tudo perderam
ou na voz de Abbey Lincoln Down Here Below.
Ou Say don´t remember.
Os meus compatriotas nas cheias de 2000
permanecem hasteados no seu abandono
ou a esquecida Rosita nascendo na árvore
agora pendurada na minha parede
já só é apenas uma aguarela de Gemuce
na nossa moçambicana e reiteirada amnésia.
Amo-te no sobressalto da América
e penso-te estes dias em Manhattan
no alto acenar dos arranha-ceús
da cidade nos filmes da minha adolescência.
Imagino-te na Quinta Avenida ouvindo
Tom Jobim. Nesta baixa de Maputo longe
do Mississipi e da desprotegida memória
a Rua Araújo sem diques cede espaço a Bagamoio
uma rua alagada de fantasmas dos blues
nossa marrabenta da América
nas sepultadas noites com putas e marinheiros
dançando o infestivo solo do guitarrista Daíco
ele próprio quase afogado no infortúnio
apenas salvo nos largos versos de um vate casmurro
a lembrar-nos que a pátria
tem que convocar estes poetas para seus heróis.

Nelson Saúte
Set. 2005

sábado, setembro 24, 2005

manuel rui, roubar sons a um furacão com o meu saxofone arroba ponto com













NEW ORLEANS MEU AMOR
O que eu não choro
são as lágrimas que deixei cair na água
meu amor. Meu amor. Só tinha duas mãos uma no teu pulso
outra no trompete e tudo. Tudo e tu meu amor e o trompete
se escaparam das minhas mãos como um solo de guitarra
vê. Só tinha duas mãos. Sonha os meus dedos
meu amor as cicatrizes de África as minhas duas mãos
tão poucas no eco de uma bateria submersa com os pratos
a boiar na água dos soluços de uma orquestra roubada.

O que eu não choro são as lágrimas
de uma cidade abaixo do nível desencalhado
aqui. Por medalhas olímpicas nas minhas pernas
em memória de Hitler nem me sobram caixões nem bandeiras
importadas do Iraque. E agora silêncio. Silêncio na afinação do piano
assim. Silêncio para os blues na água em todos os acordes
de uma cidade de onde não saí por causa do crime de roubar
com o meu saxofone sons à pauta de um furacão. Tomem nota:
roubar sons a um furacão com o meu saxofone arroba ponto com.

O que eu não choro são as lágrimas. As minhas lágrimas
acima do nível da morte com os meus tambores
a beliscar o ódio abaixo do nível do amor
mesmo quando assalto ourivesarias do ouro escravo
que me foi garimpado e pintado de branco
é também saudade de antes do dilúvio
das velharias da história dos furacões aqui. Em New Orleans
em New Orleans. E por favor silêncio. Silêncio e oiçam bem
os sons e os tons das minhas lágrimas que eu não choro
e deixei debaixo da água do rio e do mar
com o meu sax bem erecto a iluminar o céu
e o luar por cima de uma carpete toda negra
mais o meu trompete a rir
e o meu sax
cansados de chorar.
manuel rui
3/Set/2005

quarta-feira, setembro 21, 2005

o outro menino dos meus olhos

na rota do equador, fiel ao céu e ao mar

Levou muito tempo a entrar no mar. Agora, sabe que os seus caminhos passam sempre pelas ondas. Conhece e reconhece-se na imensidão do cosmos. Ama os animais como se fossem pessoas e as pessoas como se fossem animais. Pode parecer um desperdício, mas o resultados é que ficamos todos mais ricos, bichos e homens.
É ingénuo e firme, como muitos de nós. E, como muitos de nós, não vê a hora de mergulhar no mar que lhe pertence.

sexta-feira, setembro 16, 2005

(f)ilha, eternamente

São Tomé e Príncipe, uma ave pousada no arco do mar

Sempre a vi como uma ave, mais exactamente um ser voador, borboleta, libelinha, pirilampo ou vaga-lume. Por isso lhe sigo o voo e a coragem, sempre à procura de encontrar o paraíso. Pratica a vida on-line o off-line em qualquer lugar e latitude. Sobra-lhe talento, mas distrai-se pelo caminho das conchas, na beira do mar. Por isso os seus dias são curtos, e as noites avançam até às madrugadas intermináveis. (f)ilha, eternamente
16 de setembro de 2005

domingo, setembro 11, 2005

Viver sob o sol é a nossa condição irreversível

O título do post (retirado de À sombra do Sol I) remete para o último livro de José Luís Hopffer Almada, Assomada Nocturna.
Um trabalho de ourivesaria em que o autor, NZE di Sant'y Águ, se (re)propõe o lugar de origem, salvando do esquecimento um tempo íntimo e universal de um Cabo verde que "não vem" nos mapas traçados pelo imaginário comum.
Ao ler a Assomada Nocturna, pensei que, às vezes, os especialistas de uma literatura, mais parecem terra-tenentes, como se tudo à volta lhes pertencesse.
A Assomada tem, entre outras importantes qualidades, a de nos mostrar quanto Cabo Verde ainda não sabemos.
http://aulil.blogspot.com/2005/08/joo-vrio.html

da fulguração, ainda

Tenho encontrado pelo caminho muita gente, com asas aparentes, com vã glória de mandar, mas escassas no seu merecimento.
Mais tarde ou mais cedo, entre os deslumbramentos da minha vida, ou as fulgurações, "achei" Cabo Verde. E nunca mais de lá saí, porque me encontro com eles a cada passo. o seu caminho é árduo e áspero, combinações que eu bem conheço embora os meus trilhos fossem (também)outros.
Falando da luz, (que na fulguração de luz se fala), começo por uma das pontas. Uma qualquer, sem respeitar a ordem alfabética. Pela ordem natural das coisas, toda a luz há-de levar à luz. Muitos nomes aqui hão-de sentar-se. Mas hoje, nesta casa da poesia, assalta-me a voz de José Luís Tavares, poeta com asas já em pleno voo.
http://aulil.blogspot.com/2005/08/ta-muda-tenpu.html

sábado, setembro 03, 2005

Os anjos de José Rodrigues - (um)a fulguração de humana deidade

Acerca de Anjos - José Rodrigues
(prefácio de Manuel António Pina)

Diz-se que os anjos voam
doutro modo; leves;
que não levam peso
quando partem;
a nossa miséria já filtrada,
a sua misericórdia imponderável;
flutuam; pairam; vogam:
verbos de pouca densidade;
(...)

Carlos de Oliveira, Sub specie mortis


Carlos de Oliveira - quando as palavras levitam

Poiso a mão vagarosa no capô dos carros como se afagasse a crina dum cavalo. Vêm mortos de sede. Julgo que se perderam no deserto e os seu destino é apenas terem pressa. Neste emprego, ouço o ruído da engrenagem, o suave movimento do mundo a acelerar-se pouco a pouco. Quem sou eu, no entanto, que balança tenho para pesar sem erro a minha vida e os sonhos de quem passa?
Carlos de Oliveira, "Posto de Gasolina", Sobre o lado esquerdo