sexta-feira, setembro 30, 2005

Nelson Saúte, New Orleans revisitada ou a(s) geminações inevitáveis













New Orleans
Amo-te no sobressalto da América
com o trompete de um blues irredimido
mãos enxutas destes versos sem luto
para cantar uma saga negra dos mapas
na solidão de New Orleans.
Agora oiço o wonderfull world
do impenitente Louis Armstrong
na minha irresgatável África.
Amo-te ao som de uma noite rasgada
na mágoa de uma dor incessante
com estas inofensivas mãos florindo
impúberes pelo teu corpo.
Amanheço no caudal do rio que invade
a cidade minha casa também esvoaçada.
A casa de madeira e zinco da minha infância
de onde me chegavam a América
as vozes do blues na Munhuana
na algazarra dos xiguevengos.
Este foi o meu destino irrecuperável
nas ruas sem nome desta urbana incongruência
e xitala-mati não é um velho filme sem legendas
exibido nas matinés do cinema Império
nas sessões para adultos
que eu tinha acesso apenas da avenida de Angola
mas o roteiro iniciático dos meus dilúvios.
Mais tarde o Noel Langa tentou salvar-nos
a memória e albergou os boémios aos gritos
nomeando mulheres e amores contrariados
na espuma de cerveja clareando as noites de sábado
e os músicos suburbanizando os convivas da Polana.
Agora que tenho no bornal alguns mortos
quase todos enterrados no Lhanguene
e um irmão sul-africanizado pelo destino
insepulto entre as montanhas em Malelane
dou-me conta de que foi há muito
que aquelas águas devastaram a minha infância.
Amo-te no sobressalto da América
no chão úbere do meu atafulhado bairro
olho as varandas onde drapejam
nossos íntimos trapos e imagino viagem.
Tantas cidades Joanesburgo aqui perto.
A minha primeira América na voz de tenor do Mike
um negro fabuloso certamente desterrado de New Orleans
arrebatando-nos. Acena-me entretanto
o incontornável Miles Davis
numa manhã na Greenwich Village com Nova Iorque
já sem as malogradas Twin Towers.
Amo-te no sobressalto da América
ainda oiço as notas soltas dos velhos e roucos
cantores vagabundos. Memphis Sleem andou por cá.
Esta noite quero ouvi-lo a sós contigo.
Agora vôo no Big Bird de Ahmad Jamal
quase a deixar-me esmagar nas teclas deste piano
com a dor daqueles que em New Orleans tudo perderam
ou na voz de Abbey Lincoln Down Here Below.
Ou Say don´t remember.
Os meus compatriotas nas cheias de 2000
permanecem hasteados no seu abandono
ou a esquecida Rosita nascendo na árvore
agora pendurada na minha parede
já só é apenas uma aguarela de Gemuce
na nossa moçambicana e reiteirada amnésia.
Amo-te no sobressalto da América
e penso-te estes dias em Manhattan
no alto acenar dos arranha-ceús
da cidade nos filmes da minha adolescência.
Imagino-te na Quinta Avenida ouvindo
Tom Jobim. Nesta baixa de Maputo longe
do Mississipi e da desprotegida memória
a Rua Araújo sem diques cede espaço a Bagamoio
uma rua alagada de fantasmas dos blues
nossa marrabenta da América
nas sepultadas noites com putas e marinheiros
dançando o infestivo solo do guitarrista Daíco
ele próprio quase afogado no infortúnio
apenas salvo nos largos versos de um vate casmurro
a lembrar-nos que a pátria
tem que convocar estes poetas para seus heróis.

Nelson Saúte
Set. 2005

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