sábado, outubro 07, 2006

fronteiras ao acaso

aos putos, que não sabem onde mora a porta do futuro

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fotografia de Paulo Spranger


Quando perceberam que as casas estavam vazias e que nada sabiam sobre o mundo em volta, começaram a construir uma família, que começava pelos gatos e acabava nos cães. Isto foi quando deram de caras com os reality shows e umas opiniões vagas sobre o estado do país, que parecia ruir como um castelo de cartas.

Todos tinham ouvido falar das conquistas do 25 de abril, mas o desencantamento dos pais mais parecia à beira de um abismo. Aliás, com excepção dos telejornais que passavam nos intervalos do futebol, nenhuma notícia do mundo lhes chegava aos ouvidos.Por isso se fechavam numa mudez difícil de perceber, que dava muito dinheiro a ganhar, entre divãs de psiquiatras, psicólogos e gentes de outros saberes misteriosos.

Como num puzzle, todos estavam no espaço certo: era só preciso saber encaixar as peças no vazio. Vazias. Eram assim todas as casas, sem cheiro de cão nem de comida.Os pais não. Dificilmente seriam vazios, porque lhes tinham dado vida e algum carinho. Muitos, porém, mal disfarçavam como era difícil entender aquele modo de estar na vida, sem “furar” pelo meio dos outros, à procura de uma oportunidade de aparecer na televisão. Dos pais não queriam falar com ninguém, apesar das noites compridas lhes desenharam olheiras antes do tempo. Dos pais não queriam falar com ninguém, apesar de continuarem a desenhá-los como quando eram pequeninos, de mãos dadas e a gostarem muito um do outro. Se discutiam, não ouviam nada, era como se fosse um filme. Tudo ia acabar bem e a casa ficaria em ordem, outra vez, com toda a gente abraçada.

E depois, havia a televisão. Tapava tudo. Todas as bocas, nem se ouvia o silêncio dos garfos que empurravam a comida para as bocas, silenciadas. Às vezes em suspense, quando o jantar tardava e comiam ao som do survivor ou dos ficheiros secretos? Abençoada televisão, que não deixava ninguém falar, e assim notava-se menos aquela saudade dos abraços, dos beijos à hora de ir para a cama.

O que mais os fascinava, eram os filmes que alugavam nos clubes de vídeo, uma espécie de cinema em casa que ninguém parecia proibir. Ficavam horas à roda da ideia, e alugavam-nos mesmo que não os vissem ou os deixassem dias e dias em cima das mesas, sem dono aparente. O que salvava a situação, era aquelas chamadas de atenção do club de vídeo para regularizar a conta.

Nem isso fazia os pais acordar. Ninguém via as beatas no chão, os pratos de plástico queimados, os tapetes esburacados, os pratos no lava-loiça, secos, a deitar por fora, com a máquina de lavar loiça vazia.Se entrasse alguém de repente, haviam de procurar uma desculpa para aquela desordem “a empregada está doente” ou coisa assim. Ninguém podia mostrar uma casa assim aos olhos de estranhos, nem que fosse o homem do gás.

Estranhamente, porém, tocava o despertador e a família disparava inteirinha em fila indiana, a disputar a casa de banho, trocando pelo meio alguns sinais de amor familiar: “despachas-te, ou quê?” “ lá vou eu chegar atrasado” “é sempre a mesma coisa com esta gaja”. Mesmo assim, saíam com a certeza que estavam vivos e inteiros, para depois contar bocadinhos aos amigos, que tinham todos, mais ou menos, a mesma história para contar. Horas a ouvir sermões pelas latas abertas e deixadas ao acaso, pelas embalagens vazias deixadas no frigorífico a dançar sozinhas, num estranho bailado de papel.

E sempre a televisão, aquele aparelho salvador da surdez generalizada, a vomitar informações que todos comentavam como se soubessem a verdade. Pareciam estrelas de cinema, ali, em casa, a dizer toda a verdade sobre o mundo! E eles sem saberem sequer do que se estava para ali a falar. Mais bush menos bush, mais laden menos laden, de que mundo falariam, tão longe daquelas vidas onde se sentavam todos os dias?
Com tantas viagens em família, e tantos países que conheciam, eram forasteiros como os cowboys de outros tempos: passavam, rumo às praias, compravam umas prendinhas na volta, e chegavam com um bronze que fazia morrer de inveja quem estivesse nas proximidades.

Iam e vinham, ilesos pela ignorância, e tolhidos pelo medo que os questionassem: por isso se entretinham a contar histórias banais, que aconteciam a todos. As passagens na fronteira, o tempo da viagem, a comodidade do avião. A viagem era ir e voltar: não acontecia nada pelo meio.

Eram aquelas as fronteiras ao acaso, perdidas num mapa que não conheciam como tinha nascido nem porque estava ali. Delas ficavam só umas tantas fotografias para a colecção familiar, que alguém havia de juntar, mais dia menos dia.


armandina maia

4 comentários:

bettips disse...

Encontrei-te! No meio de "fronteiras do acaso" onde nos temos encontrado. Ao acaso vivem. (e a tua escrita é pungente) Abç

Nuno Gouveia disse...

Querida Armandina.
Acabei de deixar um post no Abraxas, e resolvi fazer-lhe uma visita.
Fiquei admirado com a coincidencia entre os dois posts.
A unica diferença, está no retrato de familia.
Abraços.

tsiwari disse...

Fica um nó na garganta ao ler-te assim...


... só alguém muito especial é capaz destas escritas.

Baci

armandina maia disse...

Hesitei muito antes de colocar estes textos no blog. Tenho alguns textos escritos e até publicados, mas para o blog gosto de escrever com tinta fresca, como uma manhã que se abre sempre aos meus pés.
Como gostava de ter aqui uma real luz de presença, vou destilando os filamentos da memória, labirinto que dói a todos, bem sei.
Quando tenho a felicidade de entrar num teritório comum,
tudo vale a pena.
armandina