quarta-feira, outubro 11, 2006

recolher obrigatório

Infelizmente/ a cicatriz/ já não te desfeia
José Craveirinha

Não sabia que força a sustentava e impelia a enfrentar as manhãs monocórdicas e sem mistério onde tinha mergulhado naquele dia, em que o sol começou a parecer-lhe demais para os seus olhos carcomidos. Niniguém os via assim, ludibriava a todos com o seu ar espantado e límpido, mas já nada a encantava como dantes e o riso tinha desaparecido para sempre de dentro de si. Para sempre? Alguma coisa, em nós, se parte, ao ponto de dizermos para sempre? Não sabia, nem a incomodava a resposta. Sabia que os dias ensombrados se perfilavam como um muro intransponível, árvores cerradas como perfis humanos de silêncio.

Um recolher obrigatório a trazia envolta em si mesma, sem que nada do exterior a fizesse voltar à tona. Afogava-se assim lentamente, embora chorando cada vez menos, pois as lágrimas de longo curso impediam-lhe os movimentos e normalidade. Fora então que aprendera aquele gemido que cada vez menos se ouvia, e soltava umas lágrimas como se espremesse os olhos da poeira. Depois continuava, como poeira tudo fosse. E era.

Precisava talvez da mãe, a que ainda gostaria de salvar da escuridão do esquecimento, talvez pudessem as duas perceber em que nó de mudez se tinham tornado longínquas e sofredoras com a distância. Tinha ouvido, nesse mesmo dia, uma mulher, na rua, falar à mãe com impaciência, a roçar a hostilidade. Lembrou-se de quantas vezes tinha falado assim, como se já lhe fosse tudo insuportável. Não sabia,nesse tempo, que tudo, mas tudo, pode ser de uma falibilidade monstruosa, e que uma voz de mãe é como uma casa aquecida quando tudo gelou.

Nada a devolvia à integridade de alegria de que se tinha feito parteira ao longo de anos, em que inventara palavras, gestos e risos para ela mesma e para quem estava em seu redor.Alimento mais escasso do que muitos pensavam. Às vezes, era preciso ir muito fundo até encontrar o resquício que dava para alimentar a ilusão. Depois, começava o jogo do recolhimento e nele ficava até ser obrigada a asssitir alguém, com o seu riso e o seu olhar de espanto permanente.

Agora, talvez com alguma paz, permitia-se baixar o olhar e não fingir nada. A voz era pouca para alimentar conversas e risos. Mecanicamente levantava-se e preparava mais um círculo na jaula em que movia. Lentamente, sem coragem nem nada, percorria as vezes necessárias até o ciclo do dia se fechar e os outros darem por terminada a sua prestação quotidiana.

Só os amigos lhe chegavam dentro, comovidos e ilesos de pecado, contornavam-lhe os passos e lembravam-na como era, como fora, como queriam que fosse. Para sempre. Este para sempre era afinal possível e exacto. Como o amor ou o ódio que não se cura, como o esquecimento que se intala na mente, como este bem querer que habitava alguns dos seres que lhe partilhavam a vida, e a renovavam por si, na sua vez, até que ela de novo acordasse.

armandina maia

1 comentário:

tsiwari disse...

vamos conhecendo algumas personagens assim, ao longo da vida.

e perguntamo-nos, também nós, onde e porque emudeceram, se meteram dentro delas, e foram mingando, mirrando ao correr dos dias...