segunda-feira, maio 22, 2006

Luandino Vieira: um prémio para uma Literatura a que todos pertencemos

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Capa e desenhos no interior de José Rodrigues


Algumas notas sobre a edição:
Obrigada ao
António Ferra pela cedência deste exemplar;
1ª edição legal de narrativas, escritas em 1962, no Pavilhão Prisional da PIDE, em Luanda;
Prémio João Dias, 1962 (Júri Urbano Tavares Rodrigues, Orlando da Costa, Lília da Fonseca, Noémia de Sousa e Carlos Ervedosa);
Editado pela 1ª vez em Paris, por Edições Anti-Colonial, sem data.


Humbiumbi cantado por Filipe MuKenga, Angola
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Homenagem a Luandino Vieira, cujo "esquecimento" começava a fazer-se notar, mesmo tendo em conta as já famosas políticas da corte. Para actualização sobre este assunto leia aqui.



À espera do luar

João Matias Kangatu andava devagarinho, macio, sobre a areia amarela muito molhada da maré da tarde, agarrando com força o pacote contra o peito largo de pescador.
A noite, no princípio ainda, não estava fria. Agosto já tinha chegado e era mesmo a lua desse dia que ia dar berrida no cacimbo cinzento que pinta de triste as águas azuis e verdes. Os pés largos nos quedes faziam chorar a areia e a noite espreitava o andar do homem com os seus olhos pequenos e brilhantes das janelas das estrelas.
No lado direito o mar estava falar, mas João Matias não lhe ligava, habituado dessa conversa de sempre, desde pequeninho no dongo até agora na traineira de mestre Rufino, da Ilha do Cabo. As palavras pequenas e mansas vinham na boca das águas fazer barulho na areia e o vento, em cima de tudo, dicanzava nos coqueiros lá longe, na Pescaria.
O barulho dos passos dele fez ainda Kangatu assobiar e aper­tar mais esse embrulho pequeno, de papel alcatrão, bem amarrado com fio e acabado com esse nó, só ele mesmo sabia-lhe desamarrar.
Não era a fala do mar que podia-lhe mesmo distrair nessa hora porque ali, amachucando a areia e espiando com os olhos acostumados as águas quietas da Samba, ele não sentia outra coisa, era só o coração aos pulos de alegria e medo no serviço que ia fazer.




Luandino Vieira, Vidas Novas, Lisboa, Afrontamento, 1962

6 comentários:

tsiwari disse...

"habituado dessa conversa de sempre, desde pequeninho no dongo até agora na traineira de mestre Rufino"


como é maravilhoso alguém ter o dom de pôr, por palavras, imagens tão fortes...

bem lembrado, Armandina!
(isto dos prémios passa ao lado de muitos)

alecerosana disse...

Não pude deixar de a vir ler e sentir um arrepio bom ao ler o seu texto assinado - Mãe.

Diogo N. Gaspar disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Diogo N. Gaspar disse...

boa escolha musical :-)

Dinamene disse...

Obrigado, Armandina, ma tambéu eu gosto muito de a visitar aqui. Sabe como chamávamos aos tais "quedes"?
"Banga-escorrega". Tinham uma sola horrível. :)
http://casoual.wordpress.com/

tsiwari disse...

... e parece que o laureado recusou o prémio, incluindo os 100 mil euros!