imagem criada por Alexandra Veiga
José Afonso, "Grândola"
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Zeca,
Andamos longe da Grândola já mal sabemos a letra mas temos sempre a janela de abril nas nossas vozes em que te cantámos e nos cantámos com as manhãs a florir sem orvalho nem bruma, manhãs de sol já alto que a cor das noites passadas tornava mais azuis e tudo floria vermelho papoilas eram papoilas ou cravos vermelhos não brancos como agora se tem feito em cerimónias fúnebras a fingir que é abril.
Andamos sem cravos na lapela eram tão lindos os cravos nas bocas que pareciam de todos que se queriam beijar de fraternos que éramos as mulheres opulentas do Portugal que vinha de trás, redondas cheias e lindas a beijar os pés da liberdade nos rostos dos soldados que sorriam como se fossem nossos filhos e estivéssemos na praça a festejar o dia a noite o riso que se escondera no medo das noites atrás das cortinas tanta gente tantos irmãos tantos homens a morrer num corredor da morte morno e manso.
Já não morremos assim morremos de doenças globais e modernas o stress o avc o enfarte o cancro a surménage mas morremos cada vez mais de esquecimento daquela cor cada vez mais desbotada que se apodera de nós a caminho da casa das férias a correr das pausas que não temos do sol que não vemos da orla do mar que não sentimos sob os pés e queremos viver assim esquecidos de nós tão esquecidos que os votos escasseiam e os homens bons são muito poucos para trazer à malta o que faz mesmo falta um abrigo para os que dormem na rua sem querer uma manta de carícias para os meninos sem condição que são tantos e o tempo e o tempo e o tempo que não temos a gente tem que se ver tem mesmo que se ver tem mesmo tem.
Andamos às voltas com o fmi apesar do zé mário ter dito o que disse com o medo a cortar a luz ao futuro que queremos deixar aos putos perdidos nas estradas de alcatrão nos empregos desempregados à espera do fundo a fazer de conta que são gente num país que não tem lugar para velhos nem para putos as estatísticas dizem que pesam muito o orçamento é tramado anda a reboque dos mimos com que os políticos se alimentam uma fauna desocupada ociosa e servil que faria envergonhar o o’neill por ainda termos esta feira cabisbaixa por país.
Mas há um abril por abrir e um país por parir digo-te eu que tinha a minha filha a dançar-me no ventre quando cresci naquela manhã e vi até morrer este abril e os campos são verdes e não faremos mais recados às bruxas o nosso pensamento é maior que a dureza dos dias incertos como alçapões ninguém nos lava as canções com lágrimas o cortinado roxo que nos morde o coração mas ninguém nos tira a mariazinha com os olhos no mar. Somos cinco mais cinco mais cinco até sermos múltiplos de cinco que já não se contam pelos dedos contam-se pelos olhos pela palavra pelo gesto fraterno e uno que ficou debaixo da nossa pele agora para sempre marcada pela cor vermelha da liberdade do nascer e do morrer. Para sempre.
José Afonso, "Grândola"
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Zeca,
Andamos longe da Grândola já mal sabemos a letra mas temos sempre a janela de abril nas nossas vozes em que te cantámos e nos cantámos com as manhãs a florir sem orvalho nem bruma, manhãs de sol já alto que a cor das noites passadas tornava mais azuis e tudo floria vermelho papoilas eram papoilas ou cravos vermelhos não brancos como agora se tem feito em cerimónias fúnebras a fingir que é abril.
Andamos sem cravos na lapela eram tão lindos os cravos nas bocas que pareciam de todos que se queriam beijar de fraternos que éramos as mulheres opulentas do Portugal que vinha de trás, redondas cheias e lindas a beijar os pés da liberdade nos rostos dos soldados que sorriam como se fossem nossos filhos e estivéssemos na praça a festejar o dia a noite o riso que se escondera no medo das noites atrás das cortinas tanta gente tantos irmãos tantos homens a morrer num corredor da morte morno e manso.
Já não morremos assim morremos de doenças globais e modernas o stress o avc o enfarte o cancro a surménage mas morremos cada vez mais de esquecimento daquela cor cada vez mais desbotada que se apodera de nós a caminho da casa das férias a correr das pausas que não temos do sol que não vemos da orla do mar que não sentimos sob os pés e queremos viver assim esquecidos de nós tão esquecidos que os votos escasseiam e os homens bons são muito poucos para trazer à malta o que faz mesmo falta um abrigo para os que dormem na rua sem querer uma manta de carícias para os meninos sem condição que são tantos e o tempo e o tempo e o tempo que não temos a gente tem que se ver tem mesmo que se ver tem mesmo tem.
Andamos às voltas com o fmi apesar do zé mário ter dito o que disse com o medo a cortar a luz ao futuro que queremos deixar aos putos perdidos nas estradas de alcatrão nos empregos desempregados à espera do fundo a fazer de conta que são gente num país que não tem lugar para velhos nem para putos as estatísticas dizem que pesam muito o orçamento é tramado anda a reboque dos mimos com que os políticos se alimentam uma fauna desocupada ociosa e servil que faria envergonhar o o’neill por ainda termos esta feira cabisbaixa por país.
Mas há um abril por abrir e um país por parir digo-te eu que tinha a minha filha a dançar-me no ventre quando cresci naquela manhã e vi até morrer este abril e os campos são verdes e não faremos mais recados às bruxas o nosso pensamento é maior que a dureza dos dias incertos como alçapões ninguém nos lava as canções com lágrimas o cortinado roxo que nos morde o coração mas ninguém nos tira a mariazinha com os olhos no mar. Somos cinco mais cinco mais cinco até sermos múltiplos de cinco que já não se contam pelos dedos contam-se pelos olhos pela palavra pelo gesto fraterno e uno que ficou debaixo da nossa pele agora para sempre marcada pela cor vermelha da liberdade do nascer e do morrer. Para sempre.
lisboa, 24 de abril de 2006
Maria Armandina maia
2 comentários:
Que texto tão belo!!!
O meu dia da revolução dos cravos passei-o deitado no chão da sala, vidrado no televisor...
... e lembro-me, poucos dias depois, de mim e da Fátima a tentar ensinar aquela canção "Somos livres" - Uma gaivota voava, voava ... - à minha irmã, bem mais nova, e a dizermos-lhe :
- Qdo fores grande, vais lembrar-te desta canção, de nós a ensinar-ta, deste tempo de Abril...
... e acho que não tinhamos consciência do momento que vivíamos.
Bacci.
Vou aconselhar este texto aos amigos!
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