segunda-feira, abril 10, 2006

Eugénio de Andrade: mais do que destas casas e destas ruas, sou das dunas de Fão

Fotografia de Pedro Matos



Powered by Castpost

Mozart, Sonata para piano em ré maior 576
Friedrich Gulda, piano


A casa ficava num dos extremos do terraço, fechado por muros baixos de um lado, o outro dava para outros terraços; ao fundo meia dúzia de casas, e o Cávado, com um barquito que nos levava à outra margem, em quatro ou cinco remadas. Também da janela do meu quarto se avistava, mal abria as persianas, aquele amplo corpo de água e o pequeno areal, antes de tudo se transformar em bosque. Os muros estavam cobertos de madressilva, que desciam e afogavam o azul das hidrângeas. (...) Naqueles areais, à beira daquele mar, come­çava o paraíso - um espaço sem fim de areia e água, com dunas altas, onde além de nós só havia gaivotas e algum sargaceiro distante. Se alguém quiser procurar o Ernesto terá de o fazer nesta praia, ao longo deste mar. Procurem-no entre os juncos e os cardos das dunas. Aqui passou dias e dias ao sol, os olhos perdi­dos nas páginas frementes do Lawrence, do Gide, do Whitman, do Frazer, só os levantando de vez em quan­do para olhar a franja de espuma ou chamar a nossa atenção para uma linha, um verso. Procurem-no aqui, e se não o encontrarem não o busquem noutro sítio, porque se não estiver neste areal então é porque se fez orvalho ou poeira de longínqua estrela.

Eugénio de Andrade, “Com o Ernesto, nas Dunas de Fão”, À Sombra da Memória

Sem comentários: