Pouco de minha mãe me lembro. Ocasionalmente, sabes?., examino o retrato oval, olho-a nos olhos, com ela converso, penso no colar de pérolas artificiais que traz ao pescoço, que foi feito do colar?, as coisas perdem-se assim?, os objectos de estimação desapareceem como?, fazem-se em pó?; nada se perde, tudo se transforma?; observo minucioso o nariz direito e equilibrado, as maçãs do rosto, os retoques subtis que o fotógrafo executou, o esfumado cinzento por detrás. Como seriam as suas mãos? (...) Os retratos são momentos fixados que se perdem nos próprios momentos. Os retratos são feitos e conservados para imaginarmos uma certa contagem do tempo. São feitos para eliminar o tempo, não para o conter. Porque nenhum retrato contém o movimento ondulante das mãos, o som das vozes, o testemunho de uma intrusão, a revelação do amor.Os retratos são a extensão do que imaginar se possa. Posso observar um retrato e dar-lhe a dimensão que pretender: os retratos são alvitres para inventarmos o mais imutável dos corpos e regularmos o mais enigmático dos hábitos. Os seus limites só então são transponíveis. Isto quer dizer que o retrato de minha mãe nada me diz de minha mãe; a não ser que a invente, como a ti eu te inventei. (...) Volto ao retrato; volto ao retrato porque, há tempos, comecei a pensar que muitos dos meus tormentos e apoquentações provinham da circunstância de passarem anos e anos se, ao menos uma vez, eu ter fixado o retrato de minha mãe, falar-lhe, tentar reconhecer os sinais ocultos, a natureza secreta daquele olhar, o religioso distanciamento em que aparece envolvida. Tê-la, enfim. E associar, de modo instintivo, a ideia de que lhe pertenço, pertencendo-me a ela.
Baptista-Bastos, Um homem parado no inverno
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