sábado, julho 22, 2006

férias: forget me not!



Vou de férias até 15 de agosto, se aguentar, porque o meu corpo desabituou-se destes carinhos.
Não se esqueçam de regar as plantas e falar com os pássaros ou outros animais que habitem a vossa casa ou, simplesmente, a berma das ruas solitárias.
abraços

armandina


De quatro paredes restaram as pedras (...) vento e silêncio as atravessam e nelas não dura a memória

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Pátria

Um caminho de areia solta conduzindo a parte
nenhuma. As árvores chamavam-se casuarina,
eucalipto, chanfuta. Plácidos os rios também
tinham nomes por que era costume designá-los.
Tal como as aves que sobrevoavam rente o matagal

e a floresta rumo ao azul ou ao verde mais denso
e misterioso, habitado por deuses e duendes
de uma mitologia que não vem nos tomos e tratados
que a tais coisas é costume consagrar-se. Depois,
com valados, elevações e planuras, e mais rios

entrecortando a savana, e árvores e caminhos,
aldeias, vilas e cidades com homens dentro,
a paisagem estendia-se a perder de vista
até ao capricho de uma linha imaginária. A isso
chamávamos pátria. Por vezes, de algum recesso

obscuro, erguia-se um canto bárbaro e dolente,
o cristal súbito de uma gargalhada, um soluço
indizível, a lasciva surdina de corpos enlaçados.
Ou tambores de paz simulando guerra. Esta
não se terá feito anunciar por tal forma

remota e convencional. Mas o sangue adubou
a terra, estremeceu o coração das árvores
e, meus irmãos, meus inimigos morriam. Uma
só e várias línguas eram faladas e a isso,
por estranho que pareça, também chamávamos pátria.

De quatro paredes restaram as pedras. Com as folhas
de zinco e a madeira ferida dos travejamentos
perfaziam uma casa. Partes de um corpo
desmembrado, dispersas ao acaso, vento e silêncio
as atravessam e nelas não dura a memória

que em mim, residual, subsiste. Sobre escombros
deveria,
talvez, chorar pátria e infância, os mortos que
lhe precederam a morte, o primeiro e o derradeiro
amor. Quatro paredes tombadas ao acaso
e isso bastou
para que, no que era só mundo, todo o mundo
entrasse

e o polígono demarcado, conservando embora
a original configuração, fosse percorrido por
um arrepio estrangeiro, uma premonição de gelos
e inverno. Algo lhe alterara imperceptivelmente
o perfil, minado por secreta, pertinaz enfermidade.

Semelhante a qualquer outro, o lugar volvia meta
e ponto de partida, conceitos que, como a linha
imaginária,
circunscrevem, mas de todo eludem, o essencial.
Ladeado de sombras e árvores, o caminho de areia,
que se dizia conduzir a parte alguma, abria

para o mundo. A experiência reduz, porém,
a segunda à primeira das asserções: pelo mundo
se alcança parte nenhuma; se restringe ficção
e paisagem ao exíguo mas essencial: legado
de palavras, pátria é só a língua em que me digo.

Rui Knopfli, Memória Consentida, 1982

http://ciberduvidas.sapo.pt/antologia/knopfli.html

sexta-feira, julho 21, 2006

os pássaros também têm morada

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Do cenário, tornado habitual aos nossos olhos alheios e domesticados, a câmara fixava um ou outro objecto, um rosto sem pertença, a "apagada e vil tristeza" de quem ali vivia.
"Destroços" é palavra pouca em sentido e perda, não cabe nela a dor dos que se tinham lançado à estrada, deixando tudo para trás, num gesto que ficará nas suas memórias, para sempre, como uma morte, que realmente (também) é, o abandono do lugar onde se mora, se cresce e até se nace, sem o poder salvar, sem agarrar nada: a cama onde se dorme, as tábuas do chão que pisamos, às vezes a vida inteira passarinhar em cima daquele chão.

O cenário, como já disse, está morto, é a morte. Sem que nada se mova, entre a desolação que se pressente e a vontade de nos afastarmos, para não ver mais, ergue-se um homem no meio da cena. Como no teatro, entra este personagem vivo.
Um homem alto e magro, comum em tudo, decidido no passo, avança e galga os destroços sem os olhar, se calhar até sem os ver. Caminha direito a um ponto fixo, de que não afasta os olhos nem os passos que o conduzem ao não-lugar.

É então que pára e segura na sua mão direita, uma caixa grande, levíssima, que ele ergue como uma pena, acima do pantanal que lhe envolve os pés. Ergue-a mais acima, ao nível do rosto e, num olhar rápido, vê se ela está intacta. Temos mesmo a impressão que pronuncia umas breves palavra aos seres que a habitam.

Depois, retoma a viagem de regresso, passo longo, decidido, como antes. Agora, porém, o seu coração está menos desabitado, com o calor dos pássaros que salvou da morte.
Nunca esqueçamos os pássaros nem as suas moradas: às vezes, é nas mãos deles que está a nossa salvação.


armandina maia

sexta-feira, julho 14, 2006

alexandre, o grande o'neill português





O Tempo sujo

Há dias que eu odeio
Como insultos a que não posso responder
Sem o perigo duma cruel intimidade
Com a mão que lança o pus
Que trabalha ao serviço da infecção

São dias que nunca deviam ter saído
Do mau tempo fixo
Que nos desafia da parede
Dias que nos insultam que nos lançam
As pedras do medo os vidros da mentira
As pequenas moedas da humilhação

Dias ou janelas sobre o charco
Que se espelha no céu
Dias do dia-a-dia
Comboios que trazem o sono a resmungar para o trabalho
O sono centenário

Mal vestido mal alimentado
Para o trabalho
A martelada na cabeça
A pequena morte maliciosa
Que na espiral das sirenes
Se esconde e assobia

Dias que passei no esgoto dos sonhos
Onde o sórdido dá as mãos ao sublime
Onde vi o necessário onde aprendi
Que só entre os homens e por eles
Vale a pena sonhar.

Alexandre O'Neill, No Reino da Dinamarca, 1958.

quinta-feira, julho 13, 2006

é belo que um rio guarde / a cor dos sacrifícios




Marlene Dietrich
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BOA MEMÓRIA

Se cortassem o Danúbio às fatias
ninguém veria uma mutilação.
A água abre-se em duas
e refaz-se maI o corte finda.
Só que o azul se tinge
do suor da lâmina.
Mas é belo que um rio guarde
a cor dos sacrifícios.


Fernando Namora, Marketing, 1969.

sexta-feira, julho 07, 2006

alfonsina

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os heróis possíveis para um país a precisar de muitos heróis para ser gente

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Mercedes Soza canta Los Hermanos
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1. Eu também me grudei no televisor, primeiro a torcer o nariz, muito crítica, muito (cons)ciente dos maus dinheiros que giram por baixo das mesas nas bancas do futebol. Até escrevi o Hino, qual hino?

2. Mas, por medo de ficar excluída (hipótese pouco provável, dado o meu longo traquejo em saber o que não quero) ou por, simplesmente, querer ver Portugal subir um degrau, qualquer que fosse, em terras europeias -pois era disso que se tratava, a certo ponto - acabei por passar boa parte do tempo como qualquer mortal: à espera do jogo. O último, dizia para mim, a serenar ânimos sebastianistas e assim acaba-se a espera e a esperança. Enquanto dizia isto, a esperança crescia, como um polvo.

3. Lembrei-me do Eusébio, a chorar de raiva, um touro diante de uma grande gaiola que era o mundo para o pequeno império português de onde vínhamos. Foi há quarenta anos. e, no meio de muitas recordações que o meu cérebro apagou instantaneamente num dia fatal (que fica para depois), lembro-me com nitidez de todo o jogo, dos cantos, do milagre que, se calhar, havia na dobra da esquina.

4. O futebol daquele tempo não está fora de moda. Foi o futebol do nosso tempo que se tranformou numa palavra passe com acesso permanente a jogo sujo, dinheiro, sujo, vida suja. Não são os jogadores que são assim: é o sistema, o comércio, os saldos de homens como se de bestas ainda se tratasse, os heróis que se esquecem, porque a imprensa não andou de olho neles (veja-se o "tratamento" dado a Miguel, neste Campeonato", os heróis intocáveis a quem nunca se aponta o dedo, mesmo que as imagens nos devolvam falhanços claros (que claramente acontecem a todos!).

5. Persegue-me esta mania de explicar tudo: de onde vem a mística do futebol, que segredo guarda para mover montanhas?
Temos que aprender a fazer o mesmo com as causas do país: abalá-lo, sacudi-lo, reconstruí-lo, sem nunca nos deixamos iludir pelas "boas" medidas que nos hão-de tornar um grande país.

6. Portugal NÃO É um grande país. É um país que viveu acima das suas posses durante séculos, até aprender a manha de não trabalhar, do biscate, do desenrascanso, das férias entre duas pontes, na vidinha de cada um como se ninguém fosse de todos.

7. Agora temos tudo o que há na Europa, até futebol sem jogo, como se viu, com resultados previsíveis, como também se viu. Temos também banda larga, embora grande parte do país viva num mundo por onde ela não passa. E temos fornadas de desempregados, eternos formandos, que mais não é que outra maneira de escrever desemprego. E os túneis sem saída. Os ordenados de miséria, as pensões que nos deviam fazer baixar os olhos quando nos cruzamos com uma velhota pobre e triste, mas sobretudo pobre, os remediados, as contas adiadas, as insónias por causa das contas adiadas, do trabalho que não há, dos empresários que fogem pela porta grande, dos empregos comprados, com cunhas do pai que é motorista do patrão, com olhares distraídos à perna do chefe que encosta de mansinho na nossa, com florinhas frescas na secretária da mulher do cacau, como eu vi fazer, anos a fio.

8. Um dia destes ponho-me a contar a história destes futebóis, que ninguém está ver, mas que temos que saber que existem, nesta Luz de Presença, vigilante ao roubo perene da vitalidade, empenho e audácia dos portugueses.

9. Não foi a Selecção que perdeu o jogo. Foram as muitas governações desgovernadas que perderam a jogada, por não terem (ainda) conseguido criar uma imagem digna para este país que exporta há décadas o seu bem mais precioso: mão de obra barata, que aprende depressa e pinta a manta a trabalhar, competindo com os "da terra", embora sem reconhecimento, de cá nem de lá. Como disse, muito sincero, muito lábil, mas muito bem, Cristiano Ronaldo, somos um país humilde.

10. Só mesmo por milagre Portugal conseguiria, em terreiro alheio, venver/ bater as manhas, as piscadelas de olho.
Lá fora, somos não só um país humilde, mas um país que ninguém sabe muito bem onde fica, que língua fala. Uma gentinha gentil e acolhedora, é certo, mas que não sabe onde é o seu lugar. Por isso está ali a mais, à mesa de um jogo que já não lhe pertence: é dos poderosos que tecem campanhas há séculos a sonhar grandezas e a roubar as dos outros como podem.


armandina maia

quarta-feira, julho 05, 2006

epitáfio para o século XX, um século em se pisou na Lua e se morreu de fome

Turner, Burial at the sea



Leonard Cohen canta "Like a bird on a wire" de Songs from a room
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ver também aqui

Epitáfio Para o Sec. XX

1.Aqui jaz um século
onde houve
duas ou três guerras
mundiais e milhares
de outras pequenas
e igualmente bestiais.

2.Aqui jaz um século
onde se acreditou
que estar à esquerda
ou à direita
eram questões centrais.

3.Aqui jaz um século
que quase se esvaiu
na nuvem atômica.
Salvaram-no o acaso
e os pacifistas
com sua homeopática
atitude
-nux vômica.

4.Aqui jaz o século
que um muro dividiu.
Um século de concreto
armado, canceroso,
drogado, empestado,
que enfim sobreviveu
às bactérias que pariu.

5.Aqui jaz um século
que se abismou
com as estrelas
nas telas
e que o suicídio
de supernovas
contemplou.
Um século filmado
que o vento levou.

6.Aqui jaz um século
semiótico e despótico,
que se pensou dialético
e foi patético e aidético.
Um século que decretou
a morte de Deus,
a morte da história,
a morte do homem,
em que se pisou na Lua
e se morreu de fome.

7.Aqui jaz um século
que opondo classe a classe
quase se desclassificou.
Século cheio de anátemas
e antenas, sibérias e gestapos
e ideológicas safenas;
século tecnicolor
que tudo transplantou
e o branco, do negro,
a custo aproximou.

8.Aqui jaz um século
que se deitou no divã.
Século narciso & esquizo,
que não pôde computar
seus neologismos.
Século vanguardista,
marxista, guerrilheiro,
terrorista, freudiano,
proustiano, joyciano,
borges-kafkiano.
Século de utopias e
hippies que caberiam num chip.

9.Aqui jaz um século
que se chamou moderno
e olhando presunçoso
o passado e o futuro
julgou-se eterno;
século que de si
fez tanto alarde
e, no entanto,
-já vai tarde.

10. Foi duro atravessá-lo.
Muitas vezes morri, outras
quis regressar ao 18
ou 16, pular ao 21,
sair daqui
para o lugar nenhum.

11.Tende piedade de nós, ó vós
que em outros tempos
nos julgais
da confortável galáxia
em que irônico estais.
Tende piedade de nós
-modernos medievais-
tende piedade como Villon
e Brecht por minha voz
de novo imploram.
Piedade dos que viveram neste século
per seculae seculorum.

Affonso Romano de Sant'Anna

Ainda em tempo de futebol, sem esquecer o país em riscos de ser só litoral

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Sem indicação de data ou autor




Chico Buarque, canta Futebol
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1. Os governantes estão desesperados com a situação portuguesa. Por isso multiplicam leis, mas continuam sem nos mostrar em que buraco se enfiaram os recursos económicos de que Portugal dispôs nos últimos anos.
2. Sócrates partiu para esta governação com uma ideia que “colhia” os frutos do desespero dos eleitores: temos todos consciência de que não podemos continuar a gastar o que não há e, o que é mais espantoso, sem proveito que se veja.
3. A questão não é nova: bastará reler algumas passagens de há dois séculos atrás, para comprendermos quanto o país precisa de uma reordenação total em todos os sectores, de uma requalificação transversal e impiedosa, de (finalmente) premiar o mérito, a competência e o rigor como um capital capaz de tecer a rota do futuro.
4. O terramoto de 1755, com a sua dimensão catastrófica, teve a vantagem de dar ainda maior espaço a um homem temível mas audacioso: Pombal não só reconstruiu o país como gizou coordenadas para um incipiente sistema educativo.
5. No amontoado de notícias avulsas que a governação diariamente emite, a ideia com que ficamos é que, passado este “aperto”, a população portuguesa poderá finalmente viver com a dignidade a que tem direito, sem aquele ar de parente pobre que sempre nos acompanha ao sermos confrontados com os outros.
6. O dinheiro acabou. Só mesmo as scuts ficaram, numa birrazita que não tira nem dá nada a ninguém. Tudo o resto voou.
A culpa é dos suspeitos do costume: uma multidão de funcionários, admitidos regular e irregularmente, que gastam o dinheiro todo dos contribuintes. Nunca, porém, ouvi um único comentário que perguntasse quem teve a ousadia de continuar a admitir tarefeiros, assessores, secretárias a triplicar, consultores, etc., etc., etc., sem primeiro se socorrer da prata da casa, dar-lhe formação continuada e criar equipas de trabalho com auditorias externas regulares.
7. O dinheiro acabou. Mas o pior de tudo é que não foi só roubado. Foi exterminado, mal gerido, desviado, esbanjado numa loucura generalizada por um grupo de gente de honestidade moral e intelectual duvidosa, de todos os quadrantes políticos.
8. O dinheiro acabou? Faça-se dinheiro. Abram-se as portas, mesmo sem saber a quem e, claro, corta-se aos pagadores da dízima: no ordenado, nos benefícios, no pouco e no muito.
9. O dinheiro acabou? Fecham-se os hospitais, as maternidades, as fábricas. E as escolas. Os prejuízos, dizem ainda os governantes, são incomportáveis.
(Mas então não se percebe que nas escolas despovoadas, nos hospitais com poucos doentes, nas maternidades sem parturientes, nas escolas despovoadas se poderia construir um sentimento de orgulho pelo investimento da governação no interior do país?)
10. Ficamos como touros enjaulados, a ver a avidez e a mediocridade tomar o lugar dos homens bons deste país, do interior e do litoral.

Do país “todo” que nós somos e que querem desmembrar como se de uma boneca de trapos se tratasse.

Maria Armandina Maia