domingo, novembro 26, 2006

Mário Cesariny, lugar de exílio claramente iluminado

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poema podendo servir de posfácio

ruas onde o perigo é evidente
braços verdes de práticas ocultas
cadáveres à tona de água
girassóis
e um corpo
um corpo para cortar as lâmpadas do dia
um corpo para descer uma paisagem de aves
para ir de manhã cedo e voltar muito tarde
rodeado de anões e de campos de lilases
um corpo para cobrir a tua ausência
como uma colcha
um talher
um perfume


isto ou o seu contrário, mas de certa maneira hiante
e com muita gente à volta a ver o que é
isto ou uma população de sessenta mil almas devorando almofadas escarlates a caminho do mar
e que chegam, ao crepúsculo,
encostadas aos submarinos


isto ou um torso desalojado de um verso
e cuja morte é o orgulho de todos
ó pálida cidade construída
como uma febre entre dois patamares!
vamos distribuir ao domicílio
terra para encher candelabros
leitos de fumo para amantes erectos
tabuinhas com palavras interditas
– uma mulher para este que está quase a perder o gosto à vida – tome lá –
dois netos para essa velha aí no fim da fila – não temos mais –
saquear o museu dar um diadema ao mundo e depois obrigar a repor no mesmo sítio
e para ti e para mim, assentes num espaço útil,
veneno para entornar nos olhos do gigante


isto ou um rosto um rosto solitário como barco em demanda
de vento calmo para a noite
se nós somos areia que se filtre
a um vento débil entre arbustos pintados
se um propósito deve atingir a sua margem como as correntes da terra náufragos e tempestade
se o homem das pensões e das hospedarias levanta a sua fronte de cratera molhada
se na rua o sol brilha como nunca
se por um minuto
vale a pena
esperar
isto ou a alegria igual à simples forma de um pulso
aceso entre a folhagem das mais altas lâmpadas
isto ou a alegria dita o avião de cartas
entrada pela janela saída pelo telhado
ah mas então a pirâmide existe?
ah mas e então a pirâmide diz coisas?
então a pirâmide é o segredo de cada um com o mundo?


sim meu amor a pirâmide existe
a pirâmide diz muitíssimas coisas
a pirâmide é a arte de bailar em silêncio


e em todo o caso
há praças onde esculpir um lírio
zonas subtis de propagação do azul
gestos sem dono barcos sob as flores
uma canção para ouvir-te chegar

Mário Cesariny

http://portugal.poetryinternationalweb.org

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sábado, novembro 18, 2006

a espada do rei salomão

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Lou, House of hands

A miúda estava especada no meio da rua, a dois passos da Escola, a olhar para o chão como se esperasse dali alguma salvação. O pai, desabrido e choroso, agitava os braços em todas as direcções e não parava de acusar: a mulher, por lhe ter roubado a filha. A filha, de onze anos, por não saber dizer que não à mãe. A mulher, que estragava a miúda com todos os vícios do mundo. Chorava entretanto, a meio das frases, como um soluço, para dizer que gostava muito dela. Leia-se da mulher. Aquele homem estava só, sem mulher e sem filha, e nem os muitos copos que dava sinal de ter engolido avidamente lhe atenuavam a dor.
Com aquela perda, arrastaram-se para a superfície todas as outras: no trabalho, os polícias, seus colegas, que o queriam tramar, os bandidos que rondavam a saia da mulher para a ajudarem a perder-se. E ele, o salvador de vidas, o que arriscava tudo pelos outros, estava ali como um pobre diabo, um sujeito que inspira alguma compaixão aos outros, pelo desespero caótico que soltava, nos gestos, na voz, nos tímidos choros brandos.
E a miúda ali especada, a ver a mãe a outros dois passos, com um ar levemente irónico a aflorar-lhe as pupilas e uma voz dura que dizia suavemente “Devias beber menos”, para fazer o pai recomeçar o jogo de desnorte, a ladaínha das batalhas perdidas, a fúria da dua castração e impotência.
Nem a doçura da filha os demovia. Nenhum dos dois a afastou da cena, nenhum amor superou o gozo e a dor de se agredirem mutuamente através dela.
A a miúda ali especada, a dizer-me “Eles zangaram-se e eu, estou aqui”. A mais, pensei eu. Só espero que ela nunca venha a descobrir.
Na rua, a dois passos de todos nós, um amolador de tesouras e navalhas soltava a sua melodia, inconfundível, a lembrar-nos um tempo em que todos pensávamos que ser feliz estava a dois passos de distância.

armandina maia

quarta-feira, novembro 01, 2006

eu fico-me pelo ranger do silêncio que se fez à sua volta


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Num dia em novembro damos pela sua presença que tínhamos como certa no tempo em que decoravam os cenários familiares. Achávamos que eram eternos e os sentimentos eram às vezes escassos. Uma pouquidão crescia, muitas vezes, como se receássemos mostrar-nos, na nossa fraqueza. Um dia, deixámos de os ver à nossa volta, e estranhamos, até às lágrimas. Mas, um dia de novembro, iremos sentir-nos pequenos diante dos que saem regularmente de suas casas e, seja ou não novembro, vão pôr-lhe flores frescas e conversar com eles. Como se fizesse parte das suas vidas.
Eu só os lembro, tímida demais com esses outros gestos e fico-me pelo ranger do silêncio que se fez à sua volta, a ler e reler o que os outros disseram, ciente como nunca da minha infinita fragilidade.

Em Novembro inicia-se o retorno
dos mortos mais longínquos. Dos que se iam
esquecendo do seu corpo,
ao mesmo tempo que ver-nos se lhes ria.
Somente estavam longe porque os olhos
com que os amáramos tinham
o volume perdido do seu morno
amor; ou da alegria
com que crescendo fôramos no outono
da sua ausência sapientíssima.
De resto, andavam próximos. Os olmos
quase que só escondiam
andarmos a acordar aos poucos
à vigília.
Mas, em Novembro, os corpos,
com toda a sua transparência, vinham
abrir o lugar; lustrar os copos
que o Natal da mesa alargaria
em paisagens atónitas, que todos
andaríamos vendo. E que nos viam
andar por elas dentro. E pelo próximo
retorno que em Novembro se inicia.

Fernando Echevarría, Sobre os mortos