domingo, agosto 27, 2006

quando a paisagem é um deus que arde

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A paisagem dissolvia-se num imenso abate de árvores. A terra queimada, terra batida agora, quase aliviava os corações dos que tinham hesitado em deixá-las, as terras, as casas, os animais, tudo o que antes, ainda há pouco, fora a sua morada. Às vezes desde o berço. Às vezes era aquele, só, o mar, a terra e o ar que tinham por mundo.
Custava ver soltar-se aquele fio que os prendia à vida, desatar-se, sem um nó sequer de resguardo. De repente, tudo se perde e se espalha, solto, avulso: E eles a lutar pela vida, como animais de sobrevivência que são, afinal.

Noutras paragens, gente quase nómada, tão diferente e tão igual, pede refúgio, aos milhares, a abandonar casas também queimadas por guerras de senhores que, às vezes, nem sabem bem o que lá foram fazer, perdidos em agendas de escala internacional, entre um e outro vôo.
A contrastar com as formalidades “da ajuda”, sente-se a frieza dos homens que desenham discursos sobre a dança de morte das pessoas, e até dão acenos de salão de baile, com direito a improviso de piano, enquanto se preparam para os apertos de mão em que se derretem as possibilidades de travar seja que batalha for.

Onde estarão, agora, os animais feridos, perdidos, os cães de guarda que dormiam a sono solto à porta das moradas dos donos?
Quando cairão de vez os cavalos queimados, a vaguear sobre o chão de fogo, de olhos mortos e cegos, que se atravessavam à frente da câmara do repórter, a arder de dor, de cegueira e de perda?

Ainda altos e esguios, ainda superiores no seu modo brando de mover a cabeça devagar, como esperassem a mão amiga do dono, a sussurrar-lhes palavras de conforto e amparo. Ainda o palpitar de um coração agora em chamas, mas já árvores abatidas, como tudo em volta, sem vida, sem norte, sem morte sequer?


Armandina Maia, Moledo/Cerveira, Agosto de 2006.

quarta-feira, agosto 16, 2006

como se nada ali tivesse existido

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Como se nada ali tivesse existido.

A praia assim não tem aquele ar violento que lhe dá o mar cavado, a pique, com aquela montanhas de pessoas a gritar perante a investida das ondas.
A praia desta hora tem uma faixa extensa, seca, longa e larga, onde se desenrolam cenas familiares que, de tão ternas, apetece reter para sempre: o pai e o filho adolescente que marcam com os pés na areia molhada o seu campo, o terreiro com baliza e tudo. A fila de velhotas que esperam, com uma espécie de túnica meio-levantada, a chegada do mar que lhes há-de molhar os pés e os ossos desarticulados e doridos. Os putos do surf, ainda no princípio, que só de vez em quando se conseguem erguer sobre a prancha, de onde lhes parece que o mundo é deles, apesar de saberem do perigo que os ronda, com o mar a arrastar as pranchas para longe, cada vez mais longe e com mais força.
E as meninas, curiosamente mais as meninas, a construir afincadamente castelos na areia, com pontes e ameias, passagens subterrâneas que o mar de vez em quando visita, derrubando parte do edifício, perante o desespero dos construtores. A engenharia é cuidada pelos pais, embalados pelo sonho de criança, e agora pelo das crianças que são seus filhos, aplicando-se todos na obra que o mar há-de varrer, numa pazada de água seguida de umas quantas, até alisar a areia, como se nada ali tivesse existido.
Do cenário, ficam só os sons de alegria dos meninos, a saltar dentro do castelo imaginário, gritos que nos trespassam a indiferença com que nos deitamos na areia, alheios a tudo.

Longe dali, neste mesmo planeta, outras crianças gritam perdidas, a sentirem a vida fugir, os pais a desaparecer por entre sulcos que o chão abre. Os (tele)jornais delas darão as notícias necessárias, em números todos os dias acrescentados, entre os civis que os senhores da guerra matam para acertarem num alvo que nem sequer sabemos se existe.
Se calhar é só um castelo como os de areia, que os seus olhos cobertos pela cegueira e sede de poder, tranformam em império. Um deserto de refugiados, um deserto de morte e de terror é o seu espólio, destes guerreiros apátridas que já não se lembram de uma razão para estar ali.
Aqui, como na areia dos castelos românticos, tudo irá ruir, a esperança, a dor, a esperança sobretudo e a vida não se renovará como por encanto. Como se nada ali tivesse existido.

armandina maia
moledo do minho, agosto 2006