terça-feira, setembro 18, 2012


De noite, anjos negros rodeiam-lhes as cabeceiras, atormentando-os com tudo o que ainda não têm para se sentarem um dia entre os deuses de asas fulgentes. Adormecem confundindo o oiro com o brilho do sol, sem saberem que só pela negridão dos becos poderão seguir, afastados, como estão, de qualquer sentimento, qualquer dor, qualquer fímbria de afecto.
MAM
 

domingo, setembro 16, 2012

Lugar de origem

Estou de volta a este lugar de origem.
Mais de cinco anos de ausência, para afinar o piano onde nunca toquei.
Obrigada a todos os que me seguiram, nesta vigília sem tréguas.
Armandina

Boas Notícias - Milhares de portugueses nas ruas contra a austeridade

Boas Notícias - Milhares de portugueses nas ruas contra a austeridade

segunda-feira, dezembro 24, 2007

(d)os calendários sem natal



Elas continuam paradas e tristes, à espera de um lugar no mundo. Um berço, uma voz, um abrigo, alguma paz. Há muitos anos que estão assim, paradas e tristes, sem que o seu número se reduza, a sua dor se atenue, o seu sofrimento acabe.
São as nossas crianças, as que deviam sentar-se à mesa como rainhas, a espreitar embrulhos mágicos durante a noite, como fazem todas as crianças.
Todas?
É uma maneira de desejar a perfeição, humanos que somos. A ver tantas crianças povoar o mundo, sem mesa nem colo, num calendário em que todos os dias não é natal.

Natal de 2007
Armandina Maia

domingo, abril 08, 2007

sinais de vida- palavras para matar a ausência

desenho e colagem de António Ferra

Com uma religiosidade que me é de todo estranha, todos os dias me sentava aqui e fazia o meu trabalho, um alívio para alma pesada de então. Depois, ou antes, (não havia uma ordem certa)percorria os lugares outros, que me enchiam de uma rara e límpida alegria. Como se os olhasse nos olhos, dizia-lhes o que via, sublinhando a qualidade de muito do material que por estes blogs circulam.

A pouco e pouco, porém, as palavras abandonaram-me. Ficou o lugar perene no computador e um acumular de culpas pela sistemática ausência do meu posto. Claro que, como quase todos, tinha espaçado os meus sinais de vida, mas nada justificava este abandono.

Um destes dias, ao voltar de uma sessão em que muito falámos de abandono, dos sabidos e dos não sabidos, dos consentidos, dos encobertos, dos silênciosos que nos matam a alegria. Abandonos de anos, de décadas, que nunca quisémos admitir a nós próprios. Nós, os donos da vitória efémera, os sequiosos das palavras como das fontes puras de cristal, nós, os não vendidos, sôfregos de um mundo que já pouco mais é que um mercado, onde todos se vendem e compram, perante a nossa impotência em travar a ralé sem sentimentos nem consciência pública que nos rouba o pão, a paz e a educação.
Foi aí que vi o deserto do mundo e das palavras, aproximarem-se, vertiginosamente, num carrocel onde não se distingue já quem é quem.
Senti-me orfã, de tantas coisas passadas, mas sobretudo, orfã das palavras com que se escreve futuro para gente como nós.
Abraços,

armandina maia

quinta-feira, março 08, 2007

mulheres de todos-os-dias

Di Cavalcanti, mulheres protestando



Às mulheres "pequenas" de todos os dias, que ajudam tanta gente a ser tão grande



Elas às vezes derrapam nas tarefas úteis e inúteis que acumulam, e começam a ir ao fundo, primeiro devagar, depois a pique, como se nada lhes importasse já. De repente, porém, erguem a cabeça como feras acossadas e preparam-se para sair de mais um cerco dos muitos que a vida lhes urdiu. Eles lembram-se de tudo e de todos, embora muitas vezes finjam que não se importam, para fugir da dor alheia que não podem atenuar.

Elas movem-se, no metro, nos autocarros que percorrem de lés-a-lés, como a Luísa que -ainda- sobe a calçada. Elas passam pelo supermercado enquanto esperam os filhos à saída da Escola e fazem de mães enquanto cozinham, enquanto dormem, enquanto se entregam aos homens que amam e que seus filhos serão também um dia, quando um ombro for a única coisa que os sustenta.

Elas são generosas e solidárias, mesmo que urdam traições e teias de veneno. Mas bastará que uma qualquer força as una, e aí estão elas, ressuscitadas, na sua esplêndida força de abraçar fraternamente, mesmo que seja por um segundo e não mais. Às vezes recomeçam as guerras e a dureza apodera-se delas, implacáveis, sujas, capazes de esperar anos a fio os seus inimigos.
Mas há sempre uma aura de grandiosidade neste bem e neste mal, uma coragem, um devastar de território que lhes é inerente. A conquista é delas, sempre, por mais ilusões que se alimentem.

Às vezes falam com todos, como se fossem dali desde sempre, com uma naturalidade que só uma criança conhece. Às vezes sustentam-se num silêncio, como rochas que são.
Todas da mesma família, da mesma fibra, da mesma fé de saber esperar e consolar.

Quem sabe quanto dariam para serem consoladas, para terem a cabeça só para si, mas já perderam o hábito, neste treino contínuo de tomar conta de todos, como se o sol daquelas vidas não se levantasse sem a sua ajuda.

Amam como ninguém, mesmo quando o amor está gasto. São corredoras de fundo que sabem as metas, e se renovam com atalhos que só elas sabem. Por isso emergem sempre, do fundo das águas que parecem devorá-las, para sobreviver à anca partida, ao reumático, às esperas nos hospitais, nas bichas dos autocarros, com os infalíveis sacos de plásticos que lhes traça um perfil português.

Esperaram anos que um dia fosse diferente. Agora sabem que não será e fintam o destino, vivendo cada dia, como certo num destino que é delas. Dentro de si, porém, sabem quanto valem, mesmo sem quotas dos partidos, mesmo de bilha de gás à cabeça, mesmo fazendo e desfazendo filhos de que alguns falam porque não sabem nada da quela vida delas, cheia de afecto, de revolta e de enganos sucessivos, que são a sua alegria e o seu pão.
Por isso lavam as escadas para arredondar os ordenados magros “de mulher”, partem e repartem o pão ainda ninguém sabe como, para dar à família, ao homem, aos filhos.


Trazem-nos para sempre debaixo das saias largas que as trisavós usaram e escondem-lhes a cabeça quando estão em perigo, dando-lhes de comer como meninos que são, companheiros da vida a quem querem poupar os perigos demasiados que os rodeiam, os desempregos no horizonte, os empregos a prazo, o olhar infeliz que as deixam esvaziadas e sem norte. Mas correm sempre para a frente, com aqueles filhos todos, uns delas outros adoptados, com que adormecem à cabeceira, porque fazem parte do seu sono frágil de pássaro sobressaltado e eterno.

armandina maia

sábado, fevereiro 10, 2007

até que a morte os separe

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Tenho assistido, com alguma rejeição, à verborreia de argumentos sobre o sim e o não, tudo a puxar para a política, tornando aquilo que é inevitável, em termos de crescimento colectivo, uma falsa possibilidade de escolha.
Adiar a despenalização do aborto é mais um adiamento do futuro. Quer dizer, há leis que não devem estar nas nossas mãos: devem fazer parte de um programa governamental que se preze e que defenda os direitos das pessoas como o petróleo do Alentejo.

Não vou repetir que o aborto é difícil e traumatizante, porque acho que, para muitas mulheres, foi, durante décadas, a única maneira de estancar a hemorragia de filhos que nasciam de relações de prazer e não só das prescritas pela lei religiosa, para procriar.
Desde então, alguns tímidos progressos foram feitos. As mulheres tomam a pílula, evitam os filhos e não têm portanto que se tornar assassinas em série de fetos que não caberiam na família.

Mas o que queria mesmo dizer sobre isto é que me repugna profundamente o abuso da terminologia, que chega a transformar um embrião em filho, no espaço de um referendo.
Contudo, a diferença não podia ser maior. Um embrião é fruto de uma relação sexual. PONTO. Um feto, como se estuda(va) nos liceus, é um ser que poderá vir a tornar-se uma criança, se a gravidez correr bem.

Uma criança, um recém-nascido, é um ser à tona da água, completamente à mercê dos outros, ou melhor, do amor dos outros. Mas um filho, nada de confusões, é um embrião que passou a feto, que passou a recém-nascido, e que é amado e desejado pelos que o criaram.

Uma criança mal amada, indesejada, um peso na família, abandonada a um cantinho de onde assiste a tudo o que nem um adulto deve ver, uma criança depositada em lares e orfanatos (nem sempre parecidos com uma família, como bem sabemos), ou até mesmo depositadas em colos de amas e criadas de luxo, em famílias que mal tocam nos filhos, entre o excesso de trabalho(?) e de lazer, uma criança assim nascida e criada é um filho?

Como aquele caso que conheci, do bébé crescido entre lençóis de cetim, onde a mãe o depositava, para lhe dar o biberão, que colocava em cima do travesseiro para não ter de o segurar com as suas próprias mãos.

Os “sims” nascidos do medo e do terror do confronto público, do que os outros pensam, da ignorância, dão quase sempre, “frutos” como os que atrás descrevi. Aliás, nem era preciso. Todos sabemos quantas Joanas há espalhadas pelo país.

E é inútil apontar o dedo às mães que o não são nem nunca serão. Por isso e por muitas das razões já ditas e reditas, espero que o sim seja um ponto de partida para, um dia, se responsabilizarem os pais não pela morte de um feto mas pela assistência, amor e dedicação que devem a um filho.
Qualquer que seja a sua condição e a sua vida.
Até que a morte os separe.



armandina maia

domingo, fevereiro 04, 2007

o sim e o não do referendo- que culpa nos caberá?

Foi assim que o David pôs uma pedra em cima do assunto. O David é aquele miúdo com olhar de gente crescida, com ar de órfão de guerra, a caminhar sempre lento como se nunca tivesse pressa. Nem entusiasmo. Mas insisto no olhar apagado como uma luz escura. Não há nele vestígios de revolta. Talvez algum -ou muito - medo, que já são águas passadas.
O David e os seus olhos caminham como se a estrada tivesse chegado ao fim. (Que culpa nos caberá de tudo o que ele calou?).
De vez em quando dá mostras de estar vivo, ao desenhar os ténis em fim com que enche as folhas de linhas do caderno ou os símbolos do Wrestling, que o fazem sorrir como se o riso não fosse dele.
O sorriso do David é uma verdadeira bofetada nos dias mundiais da criança. Porque o David pertence àquele grupo que parece já ter visto tudo. E não gosta do que vê nem do que sabe. No entanto, como qualquer homem de honra, jamais trairá o segredo da família. Aquela é a sua família e a sua gente.

Com mais ou menos dor, como dizia ele na composição em que contava a história dos "arrufos" familiares, lá no fundo damo-nos todos bem....
armandina maia

quinta-feira, fevereiro 01, 2007

aprender a olhar as estrelas



para as muitas joanas que este país (não) conhece

Conheci o David como um perdedor nato, camuflado num andar desleixado, a encolher as pernas (e as repetências), altas demais para a sua idade. O seu currículum falava por si. Várias retenções (leia-se repetências) na escola primária, e a coragem de não ir às aulas, ficando-se não se sabe por onde.
Chegou à escola indolente e (aparentemente) alheio, com um ar infeliz de quem está não está ali a fazer nada. Falava pouco de casa. Ninguém lhe perguntou por onde andara nos meses todos em que tinha faltado à escola. Parecia descrente, quase resignado, a cumprir a sina (ou a pena) de ter de estar ali. Sem nada daquilo que trazem os alunos, cadernos, lápis, canetas, livros, mochilas, puxava a custo de um bloco de folhas amarfanhado, uma espécie de dossié para todo o serviço.
Logo num dos primeiros dias, lancei-lhe o desafio, à espera de acertar nalgum nervo daquelo corpo franzino, precoce e apagado. Perguntei-lhe se trazia o bloco de notas na barriga para se proteger das balas dos bandidos.
Cintilaram os seus olhos. Podia ter sido ali, como em dia nenhum. Mas acho que acertei na bala que disparei. Tudo um bocado às cegas, com o instinto e a fidelidade canina com que persigo a esperança de mudar as voltas à vida.
No dia seguinte, um outro David apareceu à porta da sala: Já no meio da aula, cheguei-me perto para ver as mudanças com os meus olhos: o David escrevia, imperturbável, a desafiar as leis da gravidade que até ali sempre lhe tinham conduzido a vontade.
Vi a sua caligrafia espraiar-se, perfeitamente alinhada à esquerda, sem riscos nem hesitações. Uma letra de quem pensou muito, em muitas coisas que a nossa imaginação conhece, fértil em histórias de crianças sem história.
Para minha grande sorte, o tiro tinha acertado no alvo: o David percebeu que tinha uma palavra a dizer e que não havia nenhuma condenação perpétua nos seus 14 anos. Se o passado não lhe pertencia já, o futuro ainda poderia ser seu.
Foi eleito delegado de turma, cumprindo o mandato entre críticas e aplausos (era um bocado bruto com o pessoal das hostes inimigas, por causa do Wrestling, a sua paixão).
Saiu da Escola quase tão ingénuo como tinha chegado, ainda inábil e ainda inseguro, a disfarçar, como podia, o medo de crescer.
Mas antes, no último teste - apesar da sua avaliação, decidida entre ambos, penalizar as faltas de trabalhos de casa, baixando o seu nível de quatro para três- brindou-me com um molhe de palavras:


S'tôra, desejo que seja muito feliz


Escreveu com a sua letra firme e regular, no canto do teste, à laia de despedida.
Outro dia, veio visitar-me. Só dar um beijinho, ao portão, como mandam as regras. O seu olhar tinha crescido.
Dizia “professora” em vez de “você”, e tinha abandonado o “diga lá” com que entrecortava os diálogos. Gostava da nova escola e dos colegas. Já tinha caderno e mochila, que arrastava consigo todos os dias.
Um aluno como os outros, agora estirando as suas longuíssimas pernas entre rasteiras e jogos de bola. Um aluno como tantos outros, que não têm o futuro escrito nas estrelas, mas, se calhar, aprenderam a olhá-las.



Maria Armandina Maia

sábado, janeiro 20, 2007

Fiama, para sempre

William Turner, redheads landing



À Fiama, pela capacidade de nos emudecer com a pureza e fundura que sempre procurou para as palavras.


Do Raio de Sol

Raio de Sol na ombreira da porta,
na trave da cadeira, vindo da gelosia,
peço-te para amanhã voltares
mais arqueado pela esfericidade da Terra,
um raio não decididamente recto
cravado no meu tórax côncavo,
mas no meu coração curvo como um globo

Fiama Hasse Pais Brandão, As fábulas

sexta-feira, janeiro 19, 2007

...e o mar abriu-se outra vez

Photobucket - Video and Image Hosting


Nem o mar parou
nem os cães deixaram de nos amar
nem os corações de bater
é só preciso que a alma
se baste
com o sal, o sol e o calor
do sul

Até sempre!

armandina maia

quinta-feira, janeiro 18, 2007

contagem [de]crescente 8

imagem de antónio ferra

Amanhã chegam os dias claros, ou, pelo menos, os dias mais claros, ainda que com indizível sofrimento. Mas tudo é possível, nesta roleta russa onde nos puseram. Quem poderá dizer onde andará o sol, o tal que é para todos, amanhã de manhã? Pode ser que brilhe com a sua precisão de majestade, e tire, de uma vez, a patinha presa na neve, que não nos deixa ver o mar nem cheirar os ventos das marés.

armandina maia

quarta-feira, janeiro 17, 2007

contagem [de]crescente 7

imagem de antónio ferra

A luz chega agora por muitas vozes que nos dizem ser este o caminho, e seguimos em frente, já parcos nas palavras, porque o amor diz-se melhor em silêncio. Preparo a tua partida, a tua mão a acenar, o teu adeus de um remorso inexplicável, o de todos os filhos que, um dia, quando a própria vida lhes impõe, têm de ficar a sós com ela, para ver quão grandes são, afinal. Aprisionar o amor não é, nunca foi, uma forma de amar. Por isso, te desejo com a mesma força irremediavel de sempre, que não voltes nunca para o ventre, eterno ou materno. A diferença é pouco mais que nenhuma.
armandina maia

terça-feira, janeiro 16, 2007

contagem [de]crescente 6

imagem de antónio ferra

Do toque no fundo que senti durante anos, daquela asfixia permanente, senti-me soerguer por uma alavanca invisível que, mais uma vez, provinha do meu coração.
Talvez um dia diga da minha alma, mas, naquele tempo, ainda tinha medo de nomear as coisas não-científicas, aquelas a que os homens fogem em conversas públicas, com medo de desvendar os mais intímos e ínfimos mistérios que lhes ladeiam o ser.
Empurrada por aquela força tamanha, aprendi num golpe de asa o poder da misericórdia: real, infinita, palpável, ilimitada, que há nos diferentes, nos que esperam, nos sozinhos, nos putos, nos pais dos putos, nos velhos. Nunca os tinha visto como ali, naquele longo desfile de gente que esperava, um grupo de gente sem nada nem ninguém, a quem só a alma de cada um podia salvar.
Foi nesse dia que percebi que a tua luz andava perto e a estrela se aproximava a passos largos, mesmo quando o sol a ofuscava.

armandina maia

domingo, janeiro 14, 2007

contagem [de]crescente 5

imagem de antónio ferra

Soubémos então que os pássaros se preparavam para te salvar. O meu coração passou a seguir a estrela: mesmo quando não se via, coberta pelas densas florestas, impenetráveis, o meu coração arrancava-as do lugar, sem querer saber do quanto eram antigas. Mais antigo do que o mundo todo era o meu amor. Dos pecados haveria de me redimir depois, quando o chão voltasse ao seu lugar e o céu deixasse de me oprimir como uma cilada permanente.

armandina maia

contagem [de]crescente 4

imagem de antónio ferra

O deserto interior doía-me como uma cicatriz invisível aos olhos dos outros. Depois de secarem as lágrimas, tudo se tornou mais fácil dada a opacidade crescente em que estão envolvidas as almas que nos rodeiam. Mas eu saía a procurar-te e deixava-te recados por toda a parte: nos vidros dos carros, no cimo dos telhados, na cama que arrefecia à tua espera, nos jornais, onde também procurei o cão perdido. O cão um dia apareceu, sem ninguém explicar como nem porquê. Apareceu diante de nós, incrédulos, ergueu ligeiramente o olhar manso bovino que é o dele. E perguntou por ti e pelo mar. Foi então que, pela primeira vez, vimos a estrela sobrevoar as nossas cabeças.

armandina maia



sábado, janeiro 13, 2007

contagem [de]crescente 3

imagem de antónio ferra

Só muito mais tarde soube, pelo voo inquieto dos pássaros e pelos latidos do cão que te esperava, que o teu caminho não estava ainda encontrado, embora parecesses ter chegado quase à tona do labirinto. A minha mais perfeita medida era o aperto do coração, esvaziado de outros sentires, que agora apenas batia ao compasso do teu, como se um novo parto nos unisse outra vez e fôssemos só nós a decidir por que luta se morre ou se nasce.

armandina maia

sexta-feira, janeiro 12, 2007

contagem [de]crescente 2

imagem de antónio ferra

Pressentia-te como o chão que pisava, em toda a parte, como se, por baixo de cada um dos meus passos, tu te/me procurasses, sem saber de nenhum de nós. Esta perda foi a maior, perder o norte, não saber em que sentido estender a mão para te agarrar de uma possível queda, em busca da luz, a que eu também para ti buscava. Desde sempre, contigo, para ti e por ti, onde quer que estivesses, o meu amor havia de atravessar as grutas e os desertos, as rochas impiedosas na sua mudez, os mares que agora seguiam sem ti, sem a força dos teus braços a enterrarem-se neles, como num leito. Hás-de voltar, digo-me, hás-de voltar, digo-te, ainda às voltas nas praças, sem luz e sem norte.

armandina maia



quinta-feira, janeiro 11, 2007

contagem [de]crescente

imagem de António Ferra

Um caudal de tristeza arrastou-me para uma corrente sem fundo. Os dias sucederam-se negros e iguais, sem brecha por onde passasse qualquer pequena luz a dizer-me de ti. Só (n)0 meu coração te sabia, sem como nem onde, como um presságio de vida, um sopro que nos consente dar os passos em volta de nós e permanecermos vivos, apesar. É assim que conhecemos a verdadeira dimensão do amor, quando um lugar fica vazio e não nos podemos sentar nele, porque aquele é o lugar de nós e o meu eu desnasce sem o nós que tu me trazes. É então que viajamos pelas ruas, pelos becos, pelas igrejas, pelos abismos, à procura do encontro que nos há-de conduzir de novo à luz que nos coroava as cabeças quando éramos parte um do outro. Sabia-te à procura da saída do labirinto, a encher o peito de força e o coração de lágrimas, que os olhos, nossos, tinham secado diante da parede nua e fria que se erguia, como a formiguinha com a patinha presa na neve.

armandina maia, dia 11 de Janeiro de 2006

terça-feira, janeiro 02, 2007

mais forte do que a morte

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fotografia de antónio ferra

Voz amiga, de um dos blogues que fazem permanecer neste posto, fez-me notar o lapso da data do post anterior, que era de Dezembro de 2007 e não de Dezembro de 2006 e acrescenta:

talvez a Armandina tenha percorrido o ano todo de desejo?


Não sei já bem o que é o tempo, desde que o voo das aves baixou e tudo ficou em suspenso como se nada mais pudesse acontecer. Tenho sentido este peso a puxar-me para a terra dia e noite, como quando se está de luto e nos sentimos traidores por estarmos ainda vivos.

nenhuma solidão, nenhuma mágoa, nenhum ódio é mais longe que esta espera, que foi até agora, infinita, magestosa, soberana dona da minha vida.

sem rumo, sem regra, sem deuses, tenho caminhado só porque conheço de cor todos os caminhos, mesmos os de pedras árduas onde nunca andei mas poderia ter andado, de outra tivesse sido a minha geografia.

a luz entrará novamente no lar que ainda existe, os escombros estão perfeitamente imóveis à espera desta luz para se reconstruírem sozinhos, com a matéria viva dos sonhos que gerámos nas noites intermináveis.

aos dezanove dias de janeiro começa enfim este ano, que iluminará para sempre a sombra, que se ergueu como um muro, o muro que nos separou, o sol que não vinha, a formiga que prendia a patinha na neve, e o sol que não vinha e a sombra que se erguia atrás do muro, em vez do sol, e do mar

tenho tudo aqui, na palma da mão. o teu adeus, alegre, confuso, balbuciante, o teu adeus que abaterá o muro, para que não se erga nunca mais.

eu continuarei aqui, invencível no meu amor

mais forte do que a morte

armandina maia, dia um de janeiro de dois mil e sete